Descrição de chapéu Artes Cênicas

Peças no Festival de Curitiba discutem virulência do discurso contemporâneo

Espetáculos abordam desde o cenário político turbulento atual até comentários raivosos da internet

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Peça

Espetáculo 'Fúria', que está no Festival de Curitiba Sammi Landweer/Divulgação

Curitiba

Em tempos de banalização dos discursos, quando as palavras parecem não fazer mais efeito, Lia Rodrigues encontrou nos corpos a melhor descrição para o mal-estar contemporâneo.

“Fúria”, espetáculo que a coreógrafa apresenta no Festival de Teatro de Curitiba, é guiado pelo instinto, expresso em sons e nos gestos dos nove bailarinos. Em cena, contorcem-se, arrastam-se pelo chão, puxam uns os outros pelos cabelos, emergem de pilhas de trapos. Como uma deusa hindu, uma intérprete com o corpo todo pintado de azul se debate no chão, como se tentasse, sem sucesso, encontrar respostas para este mundo.

Trata-se, afinal, de uma resposta ao momento conturbado que vive o Brasil polarizado de hoje, com um cenário político turbulento e uma ascensão conservadora. Algo que permeia não apenas o trabalho de Lia, mas outros trabalhos da mostra curitibana.

Num  caminho também coreografado, próximo da performance, a Setra Companhia apresentou na última semana “Fedra em: O Fantástico Mundo de Hipólito”, uma adaptação de “Amor de Phaedra”, da inglesa Sarah Kane, mesclada a pesquisas da Wikipédia e comentários virulentos da internet.

A partir do mito grego de Eurípedes, o espetáculo retrata a família burguesa do rei Teseu (Airton Rodrigues), seu filho Hipólito (Maikon K) e a rainha Fedra (Cintia Napoli), madrasta de Hipólito e apaixonada pelo enteado. Se o texto original de Kane ressoava a violência trágica comum à dramaturgia inglesa dos anos 1990, aqui a Setra escancara mais a banalização da crueldade e o sensacionalismo, uma degeneração social resumida naquele desestruturado núcleo familiar.

A família também é o ponto de partida de “O Quadro de Todos Juntos”, do coletivo O Pigmalião Escultura que Mexe, que se baseou em obras como “Escola da Loucura”, de Michel Foucault, e visitas a um hospital psiquiátrico. Habituado a mesclar artes plásticas ao seu teatro, o grupo mineiro cria máscaras para os seus personagens, aqui todos com feições de porcos.

Surgem como uma fotografia aparentemente perfeita, mas aquela imagem aos poucos revela as fragilidades e superficialidades das relações familiares. As máscaras imprimem uma doçura que logo se revela falsa, e vemos emergir cenas de violência, incesto e abuso sexual dentro de um núcleo aparentemente seguro e amável. Tudo feito sem falas, apenas por meio de gestos.

No caso de “Fúria”, os gestos surgem ainda como ferramenta transformação, política e social. Lia, que há 15 anos trabalha na favela da Maré, no Rio de Janeiro, onde se encontra a sede da sua companhia de onde saiu parte do elenco do espetáculo, segue aqui as pesquisas que deram origem a espetáculos como “Para que o Céu Não Caia” —este, baseado nos relatos do xamã yanomami Davi Kopenawa sobre o mito da queda do céu.

A coreógrafa busca reinventar nossa postura social, e o faz a partir das energias primitivas do ser humano. Alterna momentos individuais e solitários com outros e coletivos, com o grupo numa massa uniforme. Como se aquele conjunto de pessoas fosse uma matéria maleável, capaz de mudar de elemento, do sólido para a o líquido e vice-versa. Enfim, capaz de se transformar.

Não à toa, a coreógrafa ecoa o “delicado radar” descrito por Clarice Lispector em “A Paixão Segundo G.H.”: “Se a gente é o mundo, a gente é movida por um delicado radar que guia”. No caso de Lia, um radar de corpos políticos.


A jornalista viajou a convite do Festival de Teatro de Curitiba.


Fúria
Teatro da Reitoria, r. 15 de Novembro, 1299, Curitiba. Qui. (4) e sex. (5), às 21h. Ingr.: R$ 70. 18 anos.

O Quadro de Todos Juntos
Teatro José Maria Santos, r. Treze de Maio, 655, Curitiba. Qua. (3) e qui. (4), às 21h. Ingr.: R$ 70. 18 anos.
 

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