Filmes inacabados de grandes cineastas às vezes ressuscitam em abordagens documentais. Em "O Inferno de Henri-Georges Clouzot" (2009), por exemplo, Serge Bromberg e Ruxandra Medrea reconstituem o ambicioso projeto que o diretor francês de "O Salário do Medo" (1953) e "As Diabólicas" (1955) não conseguiu terminar em 1964.
O belga "Carta a Theo", programado na seção O Estado das Coisas do É Tudo Verdade, filia-se à mesma tradição. O primeiro longa da francesa Elodie Lélu, 37, vasculha os escombros do filme em que o grego Theo Angelopoulos trabalhava quando morreu, atropelado por uma moto, em 24 de janeiro de 2012, aos 76 anos.
Seria um drama sobre processos migratórios e a economia globalizada. O que o diretor de "Paisagem na Neblina" (1988), "O Passo Suspenso da Cegonha" (1991) e "Um Olhar a Cada Dia" (1995) faria, a partir de seu conturbado posto de observação em Atenas, em torno desses temas-chave do século 21?
Respeitosa e também muito cuidadosa, Lélu busca todas as respostas possíveis nos rastros que Angelopoulos deixou. Ao mesclar o resultado da investigação com trechos de obras-primas do diretor, ela instaura um campo de imaginação sobre o qual o fantasma do filme inacabado paira o tempo todo.
A diretora fala de algo que também pertencia a ela. Quando estudava história da arte na Sorbonne, escolheu Angelopoulos como objeto de estudo de sua tese. Os dois se conheceram e se tornaram amigos. Mais tarde, ela decidiu estudar cinema em Bruxelas.
Convidada por Angelopoulos, foi a Atenas com passagem só de ida para participar do filme que jamais seria concluído. Sua carta muito pessoal a Theo, em forma de documentário, envolve memórias afetivas que ela estrutura de forma ensaística (a voz é da francesa Irène Jacob, de "A Dupla Vida de Véronique").
"Carta a Theo" é também uma homenagem ao diretor grego não apenas porque evoca a sua obra ao mostrar trechos de filmes, mas porque Lélu vai parar em um lugar a que Angelopoulos provavelmente gostaria de ter chegado —um lugar que, por imensa coincidência, lembra o de "Cine Marrocos", de Ricardo Calil, na competição brasileira do É Tudo Verdade.
E a cereja no bolo é o próprio Angelopoulos, em depoimento sobre o que o movia. "Faço filmes para me conhecer e para conhecer o mundo", diz ele. "Um desejo de viajar que nunca termina. Um desejo de conhecer outros lugares, outros rostos, outras situações, e me sentir sempre em uma jornada sem fim."
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