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Stanislávski, finalmente, terá sua principal obra traduzida direto do russo

'O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo' é referência para a interpretação no teatro, no cinema e na televisão

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São Paulo

​Antônio Araújo, professor da Universidade de São Paulo e diretor da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, pergunta ansioso se está confirmada a publicação da primeira tradução direta do russo da obra mais significativa sobre atuação no teatro. Ao ouvir que sim, reage. "Finalmente." 

"O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo" vai sair pela editora 34 no início do ano que vem, mas os tradutores Diego Moschkovich e Marina Nogaeva Tenório estão em estágio avançado.

Escrito pelo diretor e ator russo Constantin Stanislávski, é a referência para a interpretação não só no palco, mas no cinema e na televisão.

Constantin Stanislávski como Don Juan, em 1889 - Getty Images

A história acidentada de sua edição, desde a primeira em 1936 nos Estados Unidos, cercou de mal-entendidos o autor e seu chamado Sistema.

O maior deles vem do fato de que aquela primeira edição americana, a mesma que saiu depois no Brasil com o título "A Preparação do Ator", em 1964, trazia apenas a primeira parte da obra original e ainda assim quase pela metade.

Na forma do diário de um aluno de interpretação, saiu sem parte das discussões em sala de aula retratadas, que questionavam as próprias ideias levantadas, e sem o humor.

 

No Brasil, ela é reeditada quase todo ano, há 55 anos, e se tornou a obra de referência para atores. Mas é "totalmente enviesada", lamenta Araújo, lembrando que os problemas já começam no título.

"Se você tem um livro chamado 'A Preparação do Ator', acha que ao terminar vai estar preparado", diz, rindo. "E aí começa a série de equívocos."

O principal, que vem dos anos 1930, é que aquela primeira parte se voltava aos "elementos mais internos" da interpretação e devia ter saído junto com a segunda, que abordava os externos —como na edição russa de 1938, com Stanislávski ainda vivo.

O resultado é que nos EUA, no Brasil e por quase todo o teatro e cinema ocidentais se espalhou uma atuação afetadamente psicológica.

"Até hoje muita gente acha que o trabalho de Stanislávski é só interno, ligado à memória emotiva", diz Araújo. "O grande clichê, entre aspas, do Sistema é a tal da memória emotiva. Todo mundo fala."

Ele se refere à técnica de o ator usar uma emoção que já sentiu e aplicar esse sentimento ao personagem.

Uma primeira edição reunindo as duas partes da obra principal de Stanislávski saiu há um ano e meio no Brasil, "O Trabalho do Ator - Diário de um Aluno" (Martins Fontes). Mas aquela tradução foi, mais uma vez, a partir de uma edição em inglês, e a frustração se manteve.

"Não é preciosismo", diz Araújo. "A gente está falando de ir para a fonte, o original. Stanislávski trabalhava com termos específicos. Ainda mais sendo obra tão seminal. Stanislávski é o nosso Freud."

Cita o caso da palavra "espiritual", que em português remete imediatamente a uma dimensão religiosa, contrária à intenção de Stanislávski.

A tradutora Marina Nogaeva Tenório, nascida em Moscou, filha de mãe russa e pai brasileiro, estudou e atuou sob o diretor Anatoli Vassíliev, considerado um dos principais continuadores de Stanislávski hoje.

Como Vassíliev, ela vê a obra do mestre russo em movimento incessante, em processo, longe de um manual ou de ideias estabelecidas.

"É um artista em busca de respostas para questões que o inquietam", diz ela, argumentando vir daí, da abertura para experimentar e repensar, a explicação para a obra soar atual quase um século depois.
Aponta nele, por exemplo, "muita conexão com questões contemporâneas como a crítica do sujeito monolítico ou a performance".

A exemplo de Araújo, ela sublinha a importância da tradução de conceitos-chave para o Sistema, como aquela que se popularizou como "vivência" —e que foi usada na União Soviética para questionar discípulos como Meyerhold, cujo suposto formalismo estaria "fora da vivência".

Hoje em dia e na nova tradução, "o conceito está ampliado em várias expressões, como experiência do vivo, deixando de se restringir ao indivíduo enquanto ser psicológico".

A atriz e escritora Martha Nowill, roteirista do filme "Vermelho Russo", que retrata a temporada que passou em Moscou estudando interpretação, já havia lido e celebrado a tradução do inglês de "O Trabalho do Ator" e as anteriores e segue querendo mais.

"Toda vez que leio um prefácio dos livros dele ou de algum discípulo, fico confusa, porque tem inéditos, erros de tradução, questões de censura", brinca ela. "Desisti de entender, acho que a obra foi e continua sendo recontada. Se eu tivesse que salvar apenas um livro do fim do mundo, seria um dele", acrescenta.

Antônio Araújo cobra agora mais edições dos continuadores menos divulgados. A diretora e pedagoga russa Maria Knebel saiu na frente, com uma edição de seu "Análise-Ação" pela 34 e agora da biografia "Uma Vida para o Teatro no Tempo de Stanislávski e Stálin", da Perspectiva. "Mas ainda falta coisa, por exemplo, Tovstonógov", diretor em São Petersburgo, morto em 1989.

Vale também para os discípulos locais, a começar pelo ator russo Eugênio Kusnet, cujo trabalho de preparação e atuação em espetáculos como "Pequenos Burgueses" (1963) marcou a introdução do Sistema no Brasil.

Em 1968, a Escola de Arte Dramática da USP foi ocupada pelos alunos, com a assembleia permanente exigindo a introdução de aulas de Stanislávski por Kusnet.

Novas obras sobre ele vêm sendo lançadas, como "Do Autor ao Professor" (Hucitec) e "Ator e Estranhamento" (Senac), mas os escritos de Kusnet exigem busca em sebos. "O que se conta é que era um pedagogo incrível", diz Araújo. "E ele tem um papel importante, de compreensão do Sistema, contra os equívocos."


Trechos

'O Trabalho do Ator sobre Si Mesmo, Volume 1' 
Nos casos —infelizmente muito frequentes— quando não se cria sobre o palco o correto sentir-a-si-mesmo cênico interior, o ator, ao voltar para seu camarim, reclama: "Não estou inspirado, não foi bom, hoje!". Isso significa que o aparato criador psíquico do ator está trabalhando de forma errada ou está completamente sem ação, e entram em cena o hábito mecânico, a canastrice convencionada, o clichê, o artifício.


‘O Trabalho do Ator sobre Si Mesmo, Volume 2’ 
As leis da arte são as leis da natureza. O nascimento de uma criança, o crescimento de uma árvore, o nascimento de um personagem são fenômenos da mesma ordem. A reconstrução do “sistema”, ou seja, das leis da natureza criativa, é necessária porque em cena, devido às condições do trabalho em público, a natureza começa a ser violentada e suas leis, infringidas. O “sistema” recupera essas leis e traz a natureza humana de volta à normalidade.

O "sistema" não é um livro de receitas: você precisa de um determinado prato, olha o índice, abre na página indicada, e pronto. Não. O "sistema" não é um catálogo, é toda uma cultura com a qual nós crescemos e nos educamos ao longo de muitos anos. Ele não pode ser decorado, mas pode ser assimilado, absorvido a ponto de fazer parte do ator, de se tornar sua segunda natureza, de se fundir organicamente com ele de uma vez por todas, de transformá-lo completamente para a cena.

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