58ª Bienal de Veneza se firma como vitrine de planeta corroído

Aberta ao público no sábado (11), tradicional mostra de arte se inspira nas fake news

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Veneza

Uma nuvem de vapor engole o principal pavilhão da Bienal de Veneza à beira do mar Adriático. A neblina espessa esconde tudo ao redor. Na entrada da mais tradicional mostra de arte contemporânea do planeta, um túnel de fortes luzes brancas fluorescentes também cega os olhos de quem tenta chegar ao coração da megaexposição.

O caos de um mundo refém das fake news é a inspiração confessa para a coisa toda. Do lado de dentro, a sala mais monumental do pavilhão dos Giardini, uma das metades do evento italiano aberto na semana passada, virou uma sepultura involuntária, um canto sem luz onde pinturas, esculturas e um holograma tentam traduzir as mazelas do mundo na penumbra, um dramático teatro de sombras.

Tudo, no entanto, fica mais explícito na luz fria do miolo do prédio, onde um robô confinado entre quatro paredes de acrílico tenta varrer uma onda de líquido vermelho feito sangue que insiste em se alastrar pelo chão virgem.

O esforço —em vão— de conter e emoldurar a carnificina de uma era violenta como a nossa parece ser o fio condutor de uma edição tão explosiva quanto um tanto conservadora da exposição italiana.

Seu poder de fogo, no caso, deriva em grande parte do contraste entre materiais dóceis e nocivos, do vapor etéreo da obra da artista italiana Lara Favaretto ao sangue viscoso que afoga o robô da dupla chinesa Sun Yuan e Peng Yu.

Sua fraqueza, por outro lado, é se ancorar só em nomes fortes do circuito, sem chance de risco nem espaço para grandes descobertas —seus 79 artistas estão todos vivos, sendo a grande maioria jovem, mas já representada pelas galerias mais fortes do planeta, o que dá ares de feira dominada pelo mercado ao que deveria ser a grande plataforma da arte do momento.

O americano à frente da mostra, Ralph Rugoff, tomou o rumo de seus antecessores em Veneza e da corrente conceitual que domina as grandes mostras de arte hoje ao não determinar um tema central para a sua exposição.

Mas esse seu desapego resulta um tanto fajuto. A ausência de um conceito mascarada pelo nome da mostra, "Que Você Viva em Tempos Interessantes", funciona como mecanismo de defesa. Interessante, na atualidade, poderia ser qualquer coisa, menos o assalto à liberdades e a escalada de violência que esmagam a vida no mundo todo.

Veneza se firma então como a vitrine de um planeta corroído. Seus artistas fazem a apologia da ruína, retratando sociedades ocas e drenadas de força e vontade.

Esse lamento de fundo mais que trágico atravessa tudo ali. Na primeira galeria do Arsenale, por exemplo, as fotografias de mendigos e travestis doentes que vagam pelos becos escuros de Calcutá na obra do indiano Soham Gupta contrastam com a visão de ruínas urbanas que o americano Anthony Hernandez flagrou em Roma, de prédios e túneis abandonados a muros destroçados e colchões ao relento.

Mais trágica dessas ruínas, um barco de pesca que naufragou há quatro anos matando mais de mil refugiados que tentavam chegar à costa italiana surge como um monumento às avessas no pátio do Arsenale, uma carcaça de ferro esburacada que foi resgatada do fundo do Mediterrâneo pelas autoridades em Roma e se tornou a obra do artista suíço Christoph Büchel.

Não há sinal das mulheres e homens anônimos que perderam a vida ali. E a embarcação como imagem-síntese de uma Bienal sinistra não deixa de causar certo espanto e incômodo, embora acabe se revelando mais uma operação rasa e meio oportunista do que forte manifesto plástico.

Sobram, no entanto, alguns ecos visuais potentes. Enquanto Büchel leva um barco que se tornou câmara mortuária a essa velha fábrica naval, a alemã Hito Steyerl criou uma das obras mais fortes da mostra ao lembrar o projeto secreto de um submarino que Leonardo da Vinci esboçou e depois se recusou a vender às tropas venezianas há mais de cinco séculos, alegando não usar a sua inteligência a serviço da morte.

Mesmo a arquitetura e a escultura, aliás, se tornam cenários de resistência. Favaretto, a artista que asfixiou o pavilhão dos Giardini com sua nuvem de vapor, também criou uma série de peças de cimento que são grandes barreiras violadas pela presença do corpo --antes que os blocos endurecessem de vez, ela mergulhou neles para corroer os muros de outro modo sólidos. 

Steyerl, para além da lembrança do submarino de Da Vinci, também criou uma megainstalação em que tenta imaginar como seriam as flores de um futuro distópico, com animações tridimensionais de plantas de cores alucinantes que vagam como peixes elétricos no fundo do mar.

Uma voz ciborgue anuncia aquilo como a mais pura visão do futuro, mas acaba deixando nítido como todos os futuros construídos e imaginados agora em Veneza não passam de remendos de um presente atordoado, saturado de angústia e melancolia.

Outros artistas na exposição, entre eles o britânico Ed Atkins, o americano Ian Cheng e o canadense Jon Rafman, também fizeram desenhos 3D para construir novos universos artificiais ao mesmo tempo mais do que reais. Seus personagens de carne e osso digital ostentam uma pele de rugas e cicatrizes hiper-realistas, num simulacro atroz da condição humana a espelhar um momento que se revela cada vez mais desesperado.

Essa pele artificial ainda lembra as superfícies reluzentes das esculturas do chinês Liu Wei, que criou uma vitrine de formas metálicas futuristas, as sedutoras obras de resina do francês Jean-Luc Moulène e a superfície translúcida e elástica das tubulações que a iraniana Nairy Baghramian pendurou do lado de fora da lateral do Arsenale, como grande intestino escancarado aos elementos.

São trabalhos que aludem a corpos alvejados pelo fogo cruzado da atualidade, vítimas do conflito que outros artistas na mesma mostra retratam de forma mais literal.

O jordaniano Lawrence Abu Hamdan, por exemplo, gravou os gritos daqueles separados pelo vale na fronteira entre Síria e Israel nas colinas de Golã. A mexicana Teresa Margolles reconstruiu uma parte do muro que separa o seu país dos Estados Unidos, e o americano Christian Marclay sobrepôs num mesmo quadro as cenas de 48 filmes de guerra distintos, deixando toda a violência vazar só pelas bordas de sua tela. 

O que fica é a sensação de um mundo esvaziado, vitimado pelo que alguns desses artistas entendem como vácuo de poder. Os chineses Sun Yuan e Peng Yu, a dupla que levou a máquina de varrer sangue aos Giardini, fizeram nesse sentido a escultura de um trono sem ninguém, usando como base visual o célebre monumento a Abraham Lincoln em Washington. 

No lugar do presidente americano, puseram um tubo de plástico que enche de ar e chicoteia com violência as paredes de acrílico ao redor. O som ensurdecedor reverbera pela mostra —a trilha sonora doída para um mundo em ruínas.

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