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Almodóvar revisita carreira e sexualidade em filme autobiográfico

Na competição pela Palma de Ouro, Antonio Banderas vive diretor em crise

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Cannes (França)

Na ficção, Salvador Mallo (Antonio Banderas) é o cineasta mais cultuado da Espanha. Emergiu em meio à efervescência da movida madrilena, no início dos anos 1980, lançando filmes atrevidos e carregados de cores. Não demora para o espectador atento se dar conta de que “Dor e Glória”, mais recente produção de Pedro Almodóvar, é autobiográfica.

O maior calcanhar de Aquiles do longa, que compete à Palma de Ouro em Cannes, talvez seja justamente esse. Para os aficionados no trabalho do criador de “Tudo sobre Minha Mãe” e “Fale com Ela”, que não são poucos, a obra oferece o deleite de notar, aqui e ali, suas referências clássicas —as mulheres fortes, a poderosa figura materna, o interior da Espanha e o despertar do desejo.

À esq., o diretor Pedro Almodovar, Penelope Cruz e Antonio Banderas no tapete vermelho de 'Dor e Glória', no Festival de Cannes
À esq., o diretor Pedro Almodovar, Penelope Cruz e Antonio Banderas no tapete vermelho de 'Dor e Glória', no Festival de Cannes - Regis Duvignau/Reuters

Os não iniciados, contudo, podem ficar boiando igual ao protagonista no início da trama, um artista envelhecido que, mergulhado numa piscina, reflete sobre a própria vida. Em seus momentos menos inspirados, “Dor e Glória” recai no autopastiche, mal que assola cineastas que já passaram do seu pico criativo. Ainda assim, está bem longe da mediocridade.

Caracterizado com o mesmo penteado e os trejeitos de Almodóvar, Banderas vive esse diretor em crise. Quando a cinemateca local resolve fazer uma sessão especial de um de seus mais bem-sucedidos filmes, ele é levado a se reencontrar com o ator principal da obra, com quem rompeu 30 anos antes.

Cena do filme 'Dor e Glória' de Pedro Almodovar
Cena do filme 'Dor e Glória' de Pedro Almodovar - Reprodução

Mais do que só levar o protagonista a um novo hábito deletério (o consumo de heroína), o “revival” o forçará a fazer um balanço do passado e a topar com um terceiro sujeito, amor da juventude com quem havia perdido o contato, interpretado pelo argentino Leonardo Sbaraglia.

O segmento narrativo mais autorreferente da trama é o trecho encenado no passado, que revisita a infância do diretor na empobrecida Espanha pós-Guerra Civil.

Aos nove anos, o garoto é dado a leituras e idolatra estrelas de cinema que em tudo estão distantes de sua vida interiorana com a mãe de personalidade forte, vivida por Penélope Cruz. Suas aulas de canto no seminário abrem diálogo com outro dos mais famosos títulos de Almodóvar, “Má Educação”, que fala de pedofilia na igreja.

É no enredo ambientado no passado, aliás, que se notam os elementos mais almodovarianos de “Dor e Glória”, em particular o despertar da sexualidade do pequeno Salvador, seu alter ego, que se encanta tanto com a imagem de um jovem pintor de paredes se banhando no seu pátio que até desmaia.

Ainda na competição do Festival de Cannes, “Sorry We Missed You” é outro título com certa carga autorreferente —só que, nesse caso, não pela metalinguagem, mas pelo retorno aos temas mais frequentes de seu diretor, o britânico Ken Loach. Aqui, mais uma vez, ele exibe uma poderosa peça de seu humanismo proletário.

Vencedor da Palma de Ouro há três anos por “Eu, Daniel Blake”, drama sobre as agruras de um sujeito que luta para conseguir o seguro por invalidez, o cineasta volta suas lentes para a “uberização” da sociedade capitalista —a onda do trabalho precarizado a que desempregados são obrigados a enfrentar.

É o caso de Ricky, um pai de família que não tem emprego e resolve se virar como motorista num serviço de delivery de encomendas, desses em que o indivíduo é obrigado a varar horas dirigindo para bater metas e receber misérias sem contrapartida trabalhista alguma.

A atividade acaba por implodir a já delicada harmonia de sua família, formada por típicos representantes da classe operária da Inglaterra, numa crítica bastante contundente ao que se anuncia como o futuro das relações trabalhistas no mundo.

Mais do que realismo social, Loach faz realismo socialista. Seu nome é uma das maiores referências da esquerda no cinema e sua obra é um libelo contra as explorações de todo tipo, em particular a que está submetida a classe média baixa de seu país.

Em conversa com a imprensa, o diretor fez acenos ao líder da oposição no Parlamento britânico, Jeremy Corbyn, e culpou “falsos esquerdistas”, como Tony Blair pela precarização do trabalho. “Se acreditarmos no livre mercado, as grandes corporações tomarão o poder que levará a uma competição por piores salários”, disse.

Mondo Cannes

Bacalhau 1
A imprensa estrangeira bate cabeça para escrever o título do filme brasileiro 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A revista Variety chegou a escrever 'Bacarau' —e não foi a única. Reportagens nos sites MSN e France24 também fizeram essa mesma confusão.

Bacalhau 2
Já quando se ouve alguém pronunciar o nome do filme, não é difícil escutar por aí o afrancesado "Bacurrô" ou "Bacurraú". Outros até conseguem falar direitinho, mas gaguejam um pouco antes de acertar a palavra. Em tempo, a palavra dá nome a um pássaro noturno e à última linha de ônibus diária que circula no Recife.

Focinho do outro
No tapete vermelho, Elton John disse que levou um susto ao ver a primeira imagem de divulgação de sua cinebiografia, “Rocketman”. Achou que fosse um registro antigo seu. “Não me lembro de ter tirado essa foto”, disse. Só então lhe contaram que na verdade era o ator Taron Edgerton caracterizado como o músico.

Do lado de dentro...
O cinema brasileiro foi destaque de uma reportagem de três páginas na edição diária da revista Variety, distribuída durante o festival. O texto celebra o fato de haver seis filmes nacionais nesta edição, mas aponta incertezas devido à crise na Ancine.

...do lado de fora
“Les Misérables”, de Ladj Ly, tem ganhado destaque especial na imprensa francesa. Um ano atrás, um filme sobre o barril de pólvora que é o bairro de Montfermeil, no subúrbio de Paris, talvez não recebesse maior atenção. Mas numa época marcada por protestos como o dos coletes amarelos, o impacto do filme aumenta, opina um distribuidor francês.

Quanto vale...
No meio de discursos genéricos e platitudes que pululam em festivais de cinema, a atriz Julianne Moore resolveu pedir a adoção de medidas práticas para atender aos anseios de movimentos feministas. Ela crê que deve haver cotas na indústria. 

...ou é por quilo
Duas toneladas de lagostas, 350 quilos de “foie gras” e 9.000 garrafas de champanhe. É o quanto o hotel Le Majestic, um dos mais luxuosos e movimentados da cidade de Cannes, estima que serão consumidas ao longo das quase duas semanas de festival de cinema.

O jornalista se hospeda a convite do festival

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