Animações retratam centro paulistano como amontoado de ruínas movediças

Marcos do Bom Retiro e galeria de pinturas do Masp viram cenários corroídos na obra de Mark Lewis

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São Paulo

Os prédios e automóveis se desfazem. As copas das árvores também. Tudo afunda num pântano estranho, fendas e buracos negros se abrem no asfalto. As placas de trânsito derretem e se fundem à lataria retorcida dos ônibus e dos últimos orelhões. Sobra uma ou outra palavra reconhecível no letreiro de um banco ou mercado.

No último filme de Mark Lewis, a paisagem do Bom Retiro, tradicional bairro do centro paulistano, surge corroída diante dos olhos de alguém que caminha pelas ruas, uma câmera subjetiva à deriva por dois quilômetros.

Seu personagem anônimo e invisível atravessa esse mundo em erosão. Ele parte da Casa do Povo, o centro cultural que encomendou e exibiu o trabalho ao longo do mês passado, e vai até o que sobrou do antigo Cine Art Palácio, na avenida São João.

Esses dois marcos da arquitetura moderna no centro da cidade, um recém-resgatado do abandono e outro arruinado à espera de um futuro incerto, são início e fim de uma travessia espectral, de vultos esgarçados e concreto líquido.

Quando primeiro pisou em São Paulo, há cinco anos, esse artista canadense que fez da maior metrópole do sul do mundo o cenário-fetiche de suas obras estranhou a ausência de propaganda nas ruas, o que entendeu como um sumiço das marcas do capital.

Isso ficou evidente num passeio pelo Minhocão, que retratou num de seus primeiros filmes rodados na cidade.

"É uma das experiências urbanas mais extraordinárias que já tive, essa ideia de poder andar elevado pelo coração da modernidade. Nenhuma outra cidade do mundo, talvez só Tel Aviv, tenha tantas estruturas modernistas, algumas mais modestas, outras esquecidas, dilapidadas", lembra. "É um sentimento acachapante, você sente isso de verdade no Minhocão."

Mas, depois de filmar o polêmico elevado num dia de sol, as escadarias do metrô de Pinheiros, que diz terem saído direto do "Metrópolis" de Fritz Lang, e os urubus que descansam sobre os pináculos no topo do edifício Martinelli, Lewis resolveu dramatizar as "contradições agudas" de São Paulo numa série de trabalhos que transformam a cidade em território de guerra.

Sua obra, no fundo, é um lamento plástico por um futuro que se perdeu, a visão pornográfica do grande fracasso que se revelou a utopia moderna.

"O futuro já não é mais o que era, não está mais ligado à visão emancipatória, utópica da esquerda", diz Lewis. "E a noção de futuro proposta pelo capital só tem a ver com a maximização dos lucros. É impossível não pensar que havia outras ambições em outro momento, que as pessoas tinham outra ideia de cidade."

Lewis, como tantos pensadores críticos de uma modernidade asséptica e artificial, entre eles Walter Benjamin, romantiza a sujeira, o desvio da ordem e o caos como elementos centrais de espaços fecundos, cheios de vida.

Lembrando a obra do filósofo alemão, que comparou o caminhar na metrópole à construção de um filme às avessas, em que o movimento do corpo anima de improviso o pano de fundo da cidade, o artista decidiu dissecar um cinema abandonado como metáfora do declínio.

O Cine Art Palácio, obra de Rino Levi, deixou de ser a suntuosa sala de outrora para se tornar espelunca, primeiro exibindo obras mais populares até se entregar ao pornô. Depois virou cenário de baladas, foi ocupado por moradores de rua e então lacrado pelas autoridades como a sepultura de um mundo esquecido.

"Meu filme é sobre o fim das coisas, o fim dessa ideia, o fim do cinema, o fim da fotografia, sobre como filme e fotografia estão encalacrados e colapsaram um para dentro do outro", diz Lewis. "A arquitetura moderna não seria possível sem o cinema, e o cinema não é possível sem a arquitetura moderna. Nossa experiência cinematográfica da cidade está atrelada à ideia de utopia arquitetônica."

E à dissolução dela. Nesse sentido, Lewis constrói uma obra paradoxal. É ao mesmo tempo mais real do que real, toda construída com fotografias de verdade, e uma fantasia tão feroz a ponto de avançar séculos no tempo e transformar o Bom Retiro de hoje em Alepo ou Bagdá alvejadas.

O que faz não é um filme convencional. É uma animação tridimensional costurada fotograma por fotograma usando a tecnologia inventada pelo Google para mostrar as ruas das cidades com total nitidez. O truque está nas falhas do programa, os pontos cegos das imagens exacerbados por ele para virar "ruínas voando pelo espaço como memória de algo moderno".

Noutra obra recente, a galeria de pinturas do Masp, com telas de mestres europeus flutuando nos cavaletes de vidro de Lina Bo Bardi, também se transforma em cenário corroído. É a atualização do que fez o francês Hubert Robert ao pintar há mais de dois séculos o Louvre em ruínas, seus quadros ao relento.

Da mesma forma que o artista romântico reagia aos solavancos dos primórdios da indústria e seu impacto sobre a malha das cidades, Lewis usa a engenharia do big data para escancarar a desmaterialização do mundo físico diante do avanço dos pixels.

Ninguém habita sua metrópole carcomida, como não há mais flâneurs no Louvre arruinado de Robert. É a revolta do corpo contra um espaço corrompido. Em silêncio, como parece sublinhar a mudez de seus filmes, o futuro se desfaz.

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