Autora do hino mexicano de Dia das Mães, paranaense quer cantar no Brasil

Denisse de Kalafe está radicada no México desde 1975

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mulher de cabelo loiro cacheado
A cantora Denise de Kalafe, cantora brasileira radicada no México - Claudio Leal
Yucatán (México)

Uma família de mexicanos olhou bem e reconheceu o rosto feminino na rua iluminada pelas velas das mesas de um hotel da ilha de Holbox. “Señora, señora… Denisse de Kalafe! Cada dia cantamos mais a sua música”, acarinhou o pai, antes de pedir uma foto da artista com os filhos.

Cantora brasileira radicada no México em 1975, Denisse se tornou uma estrela da música mexicana e do Caribe ao lançar uma canção dedicada à sua mãe, Linda, concertista de piano clássico. “Señora, señora” entrou a contragosto em seu disco “Amar Es” (1981), por sugestão do produtor, e logo virou o hino popular dos mexicanos no Dia das Mães, celebrado em dez de maio.

Nas escolas, as crianças aprendem a canção memorizada por três gerações: “A ti te dedico mis versos, mi ser, mis victorias,/ a ti mis respetos señora, señora, señora,/ a ti mi guerrera invencible,/ a ti luchadora incansable,/ a ti mi amiga constante de todas las horas”. Este ano, o hit foi gravado em maia, hebraico e árabe.

“A música entrou no inconsciente coletivo da população. O México é um país de matriarcado. A deusa mexicana é a virgem de Guadalupe, mais forte que qualquer outra deidade. Eles têm uma verdadeira adoração pela mãe. Naturalmente, não fiz a música pensando nisso. Era uma coisa pessoal”, explica Denisse, na sala de sua casa, em frente ao mar verde de Holbox, na península de Yucatán.

Aconselhada por uma numeróloga, dobrou o “s” de Denise no nome artístico. Ela não revela a idade, mas sabe-se que completará em breve 70 anos.

Segundo a sua estimativa, “Señora, Señora” puxou a venda de mais de seis milhões de discos em três décadas. No YouTube, uma das postagens atingiu 17 milhões de visualizações. Alguns boleros seus, como “El Porqué de Mi Canto”, “La Vida No Es un Mar de Rosas” e “Tres Porqués”, também ficaram populares no Caribe.

Catadupas de memes sobre “Señora, Señora” correm o WhatsApp e as redes sociais. “Se aproxima o dez de maio… É hora de descongelar Denisse de Kalafe”, troça um deles. A cantora coleciona as imagens.

Afastada de shows, Denisse divide seu tempo entre a ilha e a Cidade do México. Em Holbox, caminha todas as manhãs com a água do mar até a cintura, em paralelo à linha da praia. Desde o ano passado planeja apresentar seus boleros no Brasil, onde poucos conhecem o sucesso internacional da filha emigrada.

Descendente de libaneses, Denise de Kalafe nasceu em Ponta Grossa (PR), em 1949, e mudou-se com a mãe para São Paulo, onde cantaria músicas pacifistas ao estilo Joan Baez, com cabelos longos e túnica branca, sempre de pés descalços nas boates. Em 1969, era acompanhada pelo grupo A Turma, do qual fazia parte Arnaldo Saccomani. Gravou dois compactos no Brasil.

Na noite de São Paulo, a militante de esquerda cortava o ar com o apelo antibélico: “Guerra, guerra, guerra/ Palavra que encerra/ Dentro de mim/ O medo do fim” —esta canção  de Saccomani entraria na trilha do filme “O Despertar da Besta” (1969), de José Mojica Marins.

“Minha referência no Brasil sempre foi Caetano Veloso, Gilberto Gil e, como intérprete, Maria Bethânia. Mas eu gostava muito de todos os cantores populares brasileiros. Amava Geraldo Vandré, Luiz Vieira e Roberto Carlos”, conta a artista, admiradora das gravações de boleros de Nana Caymmi. Ela aponta o acordeonista Toninho Ferragutti como o seu vínculo com a música brasileira.

Sua presença em festivais latino-americanos atraiu convites para shows no exterior. Residente na Cidade do México, no início dos anos 1970, João Gilberto a despertava para jogar pingue-pongue durante essas estadias. As viagens se tornaram tão frequentes que, em 1975, ela decidiu morar de vez no México. Três anos mais tarde, no Chile, venceria o 7º Festival OTI com “El Amor, Cosa Tan Rara” e ampliaria seu público hispânico.

A paixão por uma atriz fez com que deixasse de ser exclusivamente intérprete. “Eu fiquei tão apaixonada que não tinha remédio. Ou eu via uma psicóloga, ou me tornava compositora”, lembra Denisse, que já lançou 17 álbuns. “O que marca a diferença no México é a minha essência brasileira. Ser brasileira é um estado de espírito mais revolucionário, mais moderno, mais livre”.

Nos anos 1980, ela se firmou como atração de programas de auditório, “palenques” (festas com rinhas de galo e shows) e salões do mundo político e cultural. Um dia, em sua casa, o escritor Gabriel García Márquez interrompeu um bolero para polemizar com a anfitriã. “Não existe coisa melhor no mundo que o amor”, sentenciou Denisse. O romancista desfez: “Não. O amor é a maior invenção do ser humano”. Indignada com o comentário, a cantora revidou: “Não é invenção. É mágico”.

Cuba era um tema compartilhado com o Nobel colombiano de literatura e a origem de uma guerra jurídica com o empresário cubano-americano Leslie Pantin Jr., do Kiwanis Club de Little Havana, que a proibiu de apresentar-se no festival da Calle Ocho de Miami. O grupo de cubanos exilados reprovara um show da cantora no balneário cubano de Varadero, em 1981.

“Essa associação de Miami aproveitava a dor genuína dos cubanos. Essa dor existe, não importa se a gente é a favor ou contra. É real. E eles exploravam essa dor”, diz Denisse, vetada nas ruas da cidade. Três advogados se ofereceram para reivindicar uma indenização por danos morais e materiais, fixada pela justiça americana em US$ 2,13 milhões —com a apelação, o valor caiu para US$ 800 mil, montante doado a instituições de combate ao câncer.

Só a morte de uma namorada a afastaria dos palcos. Em 2000, ela compôs seu último bolero, “A Quién Amar Si No Es a Ti”, e silenciou. Apesar desse adeus, ainda gravaria os discos “Hacer y Deshacer” (2005) e “Detalles” (2012), com as canções de Roberto Carlos em espanhol. Denisse voltou a ser Denise e criou a fábrica de pão de queijo “Pandeque”, vendida no ano passado. Passou a organizar uma mostra gastronômica na ilha.

“Nós não podemos ser escravos dos nossos sonhos. Ser cantora e artista é um sonho. Mas a gente pode ser o que quiser”, afirma Denisse. “Vender cinco milhões de discos é a mesma coisa que vender pão de queijo. A sensação de triunfo é maravilhosa.”

Como se atendesse aos memes dos fãs, resolveu agora descongelar-se. “No meu coração há uma vontade imensa de sentar num banco e cantar para a plateia brasileira. Tenho medo. Porque no fim eu acabo sendo uma brasicana ou mexileira, como preferir. Não sou brasileira nem sou mexicana. Não sei como o povo do Brasil vai reagir quando eu cantar em espanhol, que é o meu idioma”. Em média, visita os familiares uma vez por ano.

Na noite mexicana, a caminho de uma festa popular, Denisse revelou a alma passional assim que um carro veloz respingou lama em suas duas amigas, no banco traseiro. Para alcançá-lo, a cantora acelerou o jipe e obrigou o motorista a frear. “Peça desculpas às senhoras!”, exigiu. No dia seguinte, refletiu sobre a manobra automobilística: “Quando tenho que ser intensa, sou intensa. Quando não tenho que ser, fico quieta, vendo o mar e o entardecer.” 

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