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Cinema

'Bacurau' é lição para Brasil no qual cultura e educação sangram

Filme exibido em Cannes marca escalada da violência explícita na obra de Kleber Mendonça Filho

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Udo Kier em 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Bárbara Colen, de lilás, em 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles - Divulgação
Cannes (França)

Se engana quem pensa que Kleber Mendonça Filho não fez protesto político no Festival de Cannes deste ano. Se em 2016 o diretor segurou um papel denunciando um golpe de Estado no Brasil, em 2019 o recado foi dado por via ficcional na tela grande. “Bacurau”, espécie de western distópico codirigido por Juliano Dornelles, vem mostrar que, em certo momento, só a ficção consegue dar conta da realidade.

Mendonça Filho vem construindo a cinematografia de um diretor justiceiro. Seus três longas de ficção têm em comum o foco em questões humanas e sociais em certos contextos geográficos. Foi assim com “O Som ao Redor” (2012), cujo drama era enraizado no espaço de uma rua do Recife, e também com “Aquarius” (2016), no qual o prédio homônimo era o centro do conflito vivenciado pela personagem principal.

“Bacurau” segue esse caminho, com trama que se desenrola num vilarejo de mesmo nome no sertão de Pernambuco. Mas a obra dá um salto artístico, pois a localidade marcada por forte regionalismo é usada para representar um microcosmo da sociedade brasileira e, por que não, universal.

Os personagens de “Bacurau” são arquetípicos. De um lado, tem-se as figuras típicas do vilarejo: o louco, a velha sábia, a prostituta, o bandido renegado, a filha que retorna ao ninho. De outro, personagens que representam classes coletivas: a elite nacional gananciosa por poder e dinheiro, o político que se curva a interesses externos, sacrificando a população que deveria servir, os estrangeiros que veem no país exótico uma terra sem lei para libertar, impunes, seus demônios.

Ao ver os assassinos em cena é impossível não pensar em episódios nacionais recentes como a execução de um cidadão com 80 tiros por soldados ou na excitação sórdida de um governador de estado ao embarcar no helicóptero que atiraria a esmo sobre um bairro pobre do litoral.

Nesse sentido, “Bacurau” marca uma escalada da violência explícita na obra de Mendonça Filho. Já não há nem sequer tentativa de resolução dos conflitos por via pacífica. Afinal, quando as instituições parecem servir os algozes, só resta deixar o sangue cangaceiro circular nas veias e exibir as cabeças dos executados na porta da igreja.

Depois do massacre, é hora de limpar as marcas de sangue. O chão é lavado com água, mas “na parede ninguém toca”, alerta uma personagem, lembrando que a história de um povo é tão importante quanto sua redenção. Afinal, até para enfrentar o inimigo o passado tem seu papel: são as armas do museu local do vilarejo que permitem à população combater os caçadores.

Não deixa de ser uma lição essencial num momento em que a cultura e a educação sangram no Brasil, vítimas de manobras suicidas das instituições que deveriam sustentá-las.

Mas “Bacurau” alerta: armas muito poderosas devem ser manejadas com cautela. Se a solução do conflito envolve o uso de uma arma como o bacamarte vintage usada por uma personagem do filme, que ele seja disparado de lado, evitando machucar o atirador com a força do tranco.

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