Cartas de expressionista alemão mostram que ele foi simpático ao nazismo

Posição política de Emil Nolde, que foi proibido de pintar, surpreendeu estudiosos de sua obra

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Ripe Sunflowers, 1932, de Emil Nolde | Oil on canvas, 73.5 × 89 cm | Detroit Institute of Arts, Gift of Robert H. Tannahill © Nolde Stiftung Seebüll
O óleo sobre tele 'Girassóis Maduros' (1932), de Emil Nolde - Divulgação
São Paulo

No início do mês passado, o noticiário alemão deu destaque a dois quadros do expressionista Emil Nolde que estavam sendo removidos da parede do gabinete da chanceler Angela Merkel.

O governo alemão estava devolvendo os quadros “Blumengarten – Thersens Haus”, de 1915, e “Brecher”, de 1936, a uma organização pública da capital alemã, os Museus Estatais de Berlim, depois que pesquisadores da obra de Nolde apontaram que ele defendeu o nazismo até o fim da Segunda Guerra Mundial, ao menos.

A lendária trajetória de um artista que, até então, era visto como vítima da persecutória ação dos nazistas contra os modernistas alemães se corroeu em pouco tempo.

É verdade que, embora considerado um dos principais nomes de uma escola subversiva e de vanguarda, ele já carregava a marca de ter expressado seu antissemitismo publicamente e flertado com o nazifascismo, ao menos durante o período de ascensão do partido de Hitler. 

Mas diversos pontos de sua posição política permaneciam uma incógnita e conflitavam com o perfil de um homem que produziu justamente o tipo de arte incentivada pelos judeus e recusada por Adolf Hitler e seu círculo.

A arte degenerada, como ficou pejorativamente cunhada, havia encontrado nas cores fortes de Nolde, tanto para paisagens como para retratos, uma expressão da resistência de sua classe em seu país.   

“Ficamos surpresos ao saber que Nolde permaneceu um defensor leal do nazismo até o final da Segunda Guerra, numa época em que muitos amigos ficaram desiludidos e exauridos com o conflito”, diz Aya Soika, pesquisadora da obra do artista e organizadora, junto de outros dois estudiosos, da mostra “Emil Nolde - Uma Lenda”, agora em cartaz no museu Hamburger Bahnhof, em Berlim.

Segundo Soika, o que permitiu compreender mais profundamente a ligação de Nolde com o nazismo foram as cartas que ele trocou com sua mulher Ada na época. Os documentos haviam sido mantidos ocultos até recentemente pela Fundação Ada e Emil Nolde. “Somente com o novo diretor [da fundação], Christian Ring, foi possível acessá-los”, acrescenta a curadora.

Por meio das correspondências, foi possível entender, entre outros detalhes, que Nolde mantinha relações pessoais com políticos do partido Nacional Socialista e que ele inclusive procurou extrair benefícios pessoais desse perfil. 

“Eles tinham uma grande rede de amigos influentes e conseguiram passar para o círculo interno do poder nazista. A única coisa que não conseguiram foi estabelecer uma conexão com Hitler. Mas eles tentaram”, conta Soika. 

Segundo a pesquisadora, Nolde escreveu uma longa carta a Hitler no outono de 1940, e um amigo seu que trabalhava no Ministério da Propaganda a entregou na chancelaria do Reich. O pintor, porém, nunca recebeu uma resposta. 

Nolde, no caso, procurava se preservar da perseguição que testemunhou por meio das relações pessoais. Artistas modernistas tinham suas obras destruídas pelo Exército alemão. As escolas de arte eram fechadas, livros eram queimados e, em paralelo, aconteciam as atrocidades que já conhecemos contra judeus, homossexuais e comunistas nos campos de concentração.

As conexões com o Ministério da Propaganda, com o Ministério da Educação e o Ministério das Relações Exteriores, porém, não impediram que Nolde fosse, em agosto de 1941, ele próprio proibido de fazer as suas pinturas. 

Mas o artista continuou trabalhando e, nesse período, criou secretamente o que chamou de “Telas Não Pintadas”, que mais tarde, paradoxalmente, se tornariam um símbolo de resistência, como afirma o catálogo da mostra.

“O antissemitismo de Nolde parece ser a espinha dorsal que permitiu a ele se identificar com a ideologia nazista”, diz Soika. “Embora difamado como degenerado, ele sustentou sua crença de que o partido nazista forneceria a solução para os ‘problemas do povo’, como sua mulher disse.”

Em 1943, o pintor escreveu para a mulher uma carta com o seguinte trecho: “Nunca uma guerra foi combatida com astúcia e sofisticação diabólica como essa presente. Essa horrível e abrangente guerra foi iniciada e financiada por um punhado de judeus sorridentes, enquanto se escondiam da vista dos grandes governos e bancos. Pois o que eles querem para si mesmos e para sua raça é destruir não apenas a nós como inimigos, mas até mesmo seus amigos e cúmplices”.

Com a estreia da exposição “Emil Nolde - Uma Lenda” e a ampla repercussão que a imprensa alemã deu ao conteúdo de suas cartas, as reações se iniciaram. Além da iniciativa de Merkel de devolver as pinturas de seu gabinete, Karin Prien, ministra no estado de Schleswig-Holstein, pendurou a cópia de uma pintura de Nolde em seu escritório.

“Já existe um debate sobre como lidar com artistas antissemitas, incluindo [o músico Richard] Wagner, que questiona se é possível separar a arte da pessoa”, diz Soika. Segundo ela, não há outros casos conhecidos até agora de museus ou gabinetes que se desfizeram de suas obras de Nolde.

Questionada sobre se as descobertas provocaram alguma mudança no valor da obra de Nolde, a pesquisadora diz que ficaria surpresa se os preços das obras caíssem. “Mas ainda é cedo para dizer”, afirma.

O que salva as pinturas do artista de uma repercussão ainda mais negativa é que seu trabalho, na avaliação de Soika, não expressa sua posição política de forma alguma.

Nolde achava inclusive que poderia participar da formação de uma nova arte representativa do período “e estava convencido de que sua arte era ‘áspera e forte’, como ele mesmo escreveu a Joseph Goebbels [o ministro da propaganda de Hitler]”, lembra Soika. 

Após sua ascensão, porém, e depois de alguns anos de debate sobre o papel do expressionismo, “a liderança nazista decidiu contra Nolde e promoveu o tipo de acadêmico tradicional do século 19”.

O que ocorreu é que Nolde passou a evitar, mesmo depois de ser proibido de produzir, temas que pudessem ter alguma associação com a cultura judaica. Ele se dedicou, por exemplo, a voltar o olhar para a mitologia nórdica. Era a esperança de construir uma vertente do expressionismo que pudesse ser aceita pelos nazistas.

Como explica o catálogo da mostra berlinense, em vez de ser considerado um artista da resistência, Nolde tem hoje a imagem de um pintor que aspirou a se tornar um artista do Estado, “e que nunca foi oficialmente considerado desta forma” pelo regime que tinha Hitler na cadeira mais alta.

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