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Filme do brasileiro Karim Aïnouz martela as várias facetas do machismo em Cannes

'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão' está na mostra Um Certo Olhar, paralela à competição

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Diretor Karim Aïnouz entre as atrizes Carol Duarte e Julia Stockler, nesta segunda (20), em Cannes Regis Duvignau/Reuters

Cannes (França)

Criado numa família de mulheres, o diretor cearense Karim Aïnouz explora até onde vai a couraça da resistência feminina no filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, história sobre duas irmãs vitimadas por décadas de machismo no Rio de Janeiro. Para contar esse enredo, ele se vale do melodrama e o revisita com as cores vibrantes que marcam sua obra.

O longa faz parte das seis produções brasileiras na atual edição de Cannes e estreou nesta segunda (20) na seção Um Certo Olhar, paralela à competição principal do evento. Uma das três produções da paulista RT Features no evento, a obra é inspirada no romance homônimo de Martha Batalha.

Júlia Stockler e Carol Duarte em cena do filme 'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão', de Karim Aïnouz
Júlia Stockler e Carol Duarte em cena do filme 'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão', de Karim Aïnouz - Pedro Machado/Divulgação


Nos anos 1950, Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) são duas filhas de portugueses conservadores, preparadas para casar e virar donas de casa. São tempos pré-revolução sexual, mas nada que impeça a primeira, mais arejada, de escapulir de casa para cair sozinha na noite carioca. A outra, sua cúmplice, tem outras aspirações, quer ir ao conservatório e se tornar pianista.

Ambas, contudo, estão fadadas a sucumbir num mundo em que os homens ditam as regras. Guida se enamora por um marinheiro grego e foge de casa. Eurídice está resignada a se casar virgem com um sujeito, digamos, menos apaixonante, interpretado por Gregorio Duvivier em um bem-vindo papel dramático.

Os planos da irmã fugitiva, contudo, dão errado. Seu amado é um crápula e a moça acaba voltando grávida para o Rio. Só que o pai tirânico (uma das várias emanações do patriarcado opressor da história) a expulsa de casa e, por meio de numa mentira, a impedirá de ter contato com a irmã, que tampouco sabe que sua outrora companheira voltou para o Brasil.

Ao longo dos anos, as duas viverão na ignorância quanto ao paradeiro da outra numa improvável história de duas pessoas que habitam a mesma cidade e, iludidas por uma farsa inquebrantável, acabam separadas para sempre.

Enquanto Eurídice é levada a desistir de seus sonhos para viver as obrigações domésticas que a época lhe impõe, Guida enfrenta a penúria de ser uma mãe solteira. Ao longo de mais de duas horas, Aïnouz martela as várias facetas do machismo, personificado em pais, maridos, médicos, colegas de trabalho e até outras mulheres.

Nos momentos de brilho do filme, o filtro lavado com que o diretor captura a boemia da Lapa traz à lembrança seu “Madame Satã”. A cena da noite de núpcias de Eurídice, a melhor do filme, acerta no tom tragicômico.

Outras vezes, as interpretações exageradas e mensagens muito diretas quase fazem esse exercício de melodrama descambar para a telenovela —que o digam as caras e bocas de compungidas da atriz Carol Duarte, por exemplo.

Fernanda Montenegro faz uma aparição especial no filme. Embora curta, a participação acrescenta boa parte da dignidade ao filme e evoca uma das personagens mais célebres da atriz no cinema, a Dora de “Central do Brasil”.

Chamado ao palco antes da exibição, Aïnouz leu um pequeno discurso falando de feminicídio no Brasil e dedicando a projeção às mulheres. Disse ainda que fez uma obra de resistência e deu seu apoio à marcha dos estudantes, assim como Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles haviam feito na estreia de “Bacurau”.

Na sessão, atulhada de brasileiros, o filme foi recebido com bastante aplausos. A revista americana The Hollywood Reporter destacou que a capacidade do diretor para “modular os tons do filme garante que, mesmo com sua longa duração, ele continue surpreendendo”.

“Apesar de suas várias descrições de cruel insensibilidade, injustiça cotidiana e desapontamento crônico, é um drama que assombra e celebra a resiliência das mulheres.”

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