Descrição de chapéu Livros

Jornalista resgata amor dos avós e narra rotina de doença em livro

Obra de Nirlando Beirão reúne memórias com as vivências dos dias de hoje

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São Paulo

​“‘Degenerativa’ é uma palavra que tira você para dançar —uma dança de medo. ‘Degenerativa’, a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou.”

Em julho de 2016, àquela altura com 67 anos, o jornalista Nirlando Beirão recebeu o diagnóstico de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), doença que se tornou conhecida mundo afora com o caso do físico inglês Stephen Hawking.

Com a experiência de mais de meio século de jornalismo, do Jornal da Tarde a O Estado de S. Paulo, da Playboy à CartaCapital, Nirlando pensou num blog para descrever sua convivência com a doença. Havia até nome, Neuro e Neuras. 

Mudou de ideia. A experiência valia um livro. Existia, porém, um outro projeto que ele acalentava havia anos: contar a história de amor dos seus avós paternos. No início do século 20, o português António Beirão deixou a batina para se casar com a mineira Esméria Miranda, fato que se tornou tabu na família. “O padre e a moça romperam o lacre da hipocrisia.”

O jornalista e escritor Nirlando Beirão
O jornalista e escritor Nirlando Beirão - Marcos Vilas Boas/Divulgação

O recém-lançado “Meus Começos e Meu Fim” converteu-se, então, no resultado do encontro de Portugal com o Brasil, das memórias com as vivências dos dias de hoje. 

“Uma narrativa se fundiu à outra. Falar de um amor proibido e corajoso pode compensar minha tendência de, ao falar de mim, me deixar levar por um acervo de autocomiseração”, escreve.

Houve quem duvidasse da viabilidade de abarcar duas missões em um só livro. “Você vai é se esconder atrás da história dos seus avós”, ele ouviu mais de uma vez.

Nirlando não se esconde. Fala francamente do País da Doença, onde vivem neurologista, fisiatra, fisioterapeuta, fonoaudióloga, nutricionista. Além das homenagens aos aventais brancos, faz seu tributo à mão direita, com a qual escreveu o livro. 

“Sou hoje a minha mão direita. De todas as roldanas, polias, gruas e alavancas subcutâneas que comandam, com competência invisível nossos movimentos, este é o único item da anatomia que não me traiu miseravelmente”, conta.

O País da Doença é feito de descobertas. “As fasciculações são tremeliques que sinto por baixo da pele [...]. Significam que os músculos estão sob ataque cerrado do meu neurônio pernicioso e vingativo”.
Nirlando soube burilar o humor para se tornar um dos melhores textos da imprensa brasileira. É o que se vê em livros como “Corinthians: É Preto no Branco” (2005).

A nova obra enfrenta abertamente a proximidade da morte, mas não cai na morbidez ou na pieguice graças, em grande parte, à picardia que ele trouxe de Minas Gerais. 

A auto-ironia o situa entre a barata tcheca e a felicidade hollywoodiana. “Tem dias que acordo Franz Kafka, tem dias que acordo Frank Capra.”

É nesse mesma toada, entre angústia, sarcasmo e transparência, que reencontra os seus avós. Depois do seminário em Viseu, onde foi colega de Salazar (o futuro ditador de Portugal), António veio ao Brasil para assumir a paróquia de Oliveira (MG). Conheceu Esméria, uma paixão como as dos romances de Eça de Queiroz.

A relação, inadmissível para a Igreja Católica, obrigou o casal a deixar a pequena cidade e tocar a vida em outros cantos até que, anos depois, se estabeleceu em Belo Horizonte. 

O autor diz à Folha que foram as lembranças do seu pai que mais o comoveram durante a escrita. Homem alegre, bom de prosa, o comerciante Nirlando jamais falou com os filhos sobre o drama vivido por António e Esméria. “Meu pai silenciou essa dor”. 

Além dos mistérios do passado (o amor dos avós) e do presente (a doença), o jornalista comenta no livro a paternidade, a imprensa, a política, o cinema. Em capítulo sobre velhice e literatura, escreve: “Livros não fazem as pessoas melhores. A vida é que sabe ensinar”. 

É uma provocação, diz Nirlando. Para ele, existe um fetiche exagerado em torno dos livros —uma “pose”, complementa a mulher dele, a dramaturga e jornalista Marta Goes, que acompanha a entrevista.

Ao chegar ao ponto final do último parágrafo, na página 186, este signatário pode dizer que “Meus Começos e meu Fim” faz, sim, uma pessoa melhor. É, no mínimo, uma aula de como escrever bem.


Trechos da obra

Minha companheira de todos os dias passou a ser a palavra ‘limite’. Tentar tornar os obstáculos mais elásticos é o que me resta, na ansiedade de um legado ainda sonhado. Meu repertório —de novo, limitado— me sugere um livro. O meu livro, como cobram os amigos, em desafio que me arrepia

Quando um amigo meu nascido em Oliveira, a cidade do crime, comentou, certo dia: ‘E o padre Beirão, hein?’, nós dois rimos. Eu já sabia do peca-do. Foi um privilégio ver encarapitada na banalidade da minha árvore genealógica tão flamejante tramoia de Vênus e de Eros 

Adoro o jornalismo tido como desim-portante, das franjas [...], que é de fato o que retrata nossa época

Meus Começos e Meu Fim

  • Preço R$ 49,90 (192 págs.)
  • Autor Nirlando Beirão
  • Editora Companhia das Letras
Erramos: o texto foi alterado

Uma versão anterior deste texto informava incorretamente o título do livro. O nome é "Meus Começos e Meu Fim", e não "Meus Passados e Meu Fim"

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