Descrição de chapéu

Na cidade capenga de vivência pública, qualquer evento de rua vira trégua

Não sou o único sozinho e me pego pensando no que mais faz as pessoas se proporem a curtir a noite sem companhia

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Chego pela República. “Freddie Mercury! Veio cantar?”. Não preciso olhar; sei que é comigo que fala o grupinho. “Ei Freddie! Tá com pressa?”. No saguão movimentado e barulhento do metrô, lanço um “sorry, it’s showtime”. Os três riem, felizes em associar o meu bigode ao líder do Queen. Para quem chegou receoso, com histórico de aperto em Viradas Culturais, o humor é bom cartão de visitas.

Na catraca, um sujeito se diverte com a cena. Caindo do seu bolso, um Guia Folha estampa a festa LGBT Batekoo. Peço para olhar a programação. Percorro as páginas só para confirmar que, desinformado, não tenho rumo.

Passeando pelas bordas da praça da República, os semáforos são apenas enfeites sem os carros e o povo veio em peso --na cidade capenga de vivência pública, qualquer evento de rua vira trégua. E, em frente à Ocupação Ipiranga, crianças brincam de correr no asfalto.

Passa da meia-noite. As viaturas são presença constante. Na calçada, um policial ergue um smartphone à altura do rosto. Tento, mas não vejo a tela. Registro do movimento cívico ou selfie? Vai saber.

Nas quinas da praça, um palco de funk lotado oposto a um minúsculo trailer, sede de um karaokê. Covers de Cássia Eller se seguem a de Charlie Brown Jr. “Faz um barulho para o Chorão lá de cima!”, grita um homem no microfone, homenageando o vocalista morto da banda ou, quem sabe, se referindo a Deus de maneira peculiar.

Nos arredores, a rua do Arouche parece atingir lotação máxima. A temática é brega, o público se diverte fantasiado. Ando com meu caderno, em inesperada sensação de segurança, escrevendo frases soltas. Não sou o único a caminhar sozinho e me pego pensando no que mais faz as pessoas se proporem a curtir a noite sem companhia.

Chego à Rio Branco, a tempo de ver os Boogarins terminarem o show. Confirmo: há algo de magnético nesta banda. “Vou viver o hoje, amor. Contigo ou sem. Esquece de toda dor que a vida tem”. Os versos de “Doce”, cantados por muitos, servem de ilustração amarga à dinâmica de uma cidade segregada.

É ao final da música que um casal se beija, enquanto um homem recolhe latas do chão. Na esquina oposta ao palco, banheiros químicos parecem cordão de isolamento do antigo edifício Wilton Paes de Almeida. Um ano após o incêndio e desabamento, produto violento de um insistente descaso social, o vazio do prédio --marcado na destruição das paredes da igrejinha vizinha-- segue relembrando que talvez não haja motivos para celebrar São Paulo.

Encontro com amigos. A Casa de Francisca, com música no terraço, estava imperdível, dizem. Ao longe, um homem vende bandeiras de arco-íris. Pequenos avanços em meio a tantos nãos. Em direção ao Anhangabaú, uma instalação de guarda-chuvas coloridos enfeita a São João, lado a lado a uma Praça das Artes em ebulição.

Sob o viaduto, Seun Kuti, filho de Fela, e o Egypt 80 assombram pela potência. A cantora Iza se junta ao final da festa. E percebo: talvez por medo de roubos, o horizonte está quase limpo de celulares. O público parece obrigado aos modos analógicos de apreciação de show --assim, de um jeito fora de moda, com os olhos e os ouvidos.

Cinco da manhã. Checar a programação trap, o show do Recayd Mod? À medida que nos aproximamos da São Bento, o clima pesa. Não se vê, se sente. Uma amiga sugere o metrô. A projeção em um prédio desafia: “Decifra-me para você ver”. Vou me abster desta vez. E volto para casa, suportando São Paulo.

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