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Cinema

Pulsante e sombrio, filme de Karim Aïnouz mostra mulheres impedidas de escolher destino

Hábil fotografia de 'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão' respeita a vocação do diretor para o não realismo

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Júlia Stockler e Carol Duarte em cena do filme 'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão', de Karim Aïnouz

Júlia Stockler e Carol Duarte em cena do filme 'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão', de Karim Aïnouz Pedro Machado/Divulgação

Cannes (França)

Há pelo menos uma cena em “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” que não poderia ter sido dirigida por ninguém além de Karim Aïnouz. A noite de núpcias da personagem do título é uma sinfonia visual do desencontro de corpos —e também de almas— que se tornou familiar para quem já assistiu a outros filmes do diretor.

Exibido nesta semana no Festival de Cannes, o filme levou o prêmio de melhor filme da seção Um Certo Olhar, que integra a programação oficial.

Ao registrar personagens que parecem tentar escapar do desconforto de suas próprias peles, Aïnouz construiu uma filmografia especialmente interessada no desejo de um lugar novo, na busca por um jeito de viver diferente daquele que foi socialmente designado. 

Assim foi com o vulcânico Madame Satã, a errante Violeta de “Abismo Prateado” e o fugidio Donato de “Praia do Futuro”, e assim será com as irmãs Gusmão: duas mulheres cujas trajetórias são constrangidas pelas imposições masculinas e sociais do seu tempo.

E para contar a história de Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), personagens principais do romance de Martha Batalha que embasa o filme, Aïnouz se vale da estrutura do melodrama e de uma hábil fotografia que respeita a vocação do diretor para o não realismo.

Hélène Louvart (que traz no currículo filmes icônicos como “Pina”, de Wim Wenders, “As Praias de Agnès”, de Agnès Varda, e "Lazzaro Felice", de Alice Rohwacher) é possivelmente a mais feliz colaboração visual de Aïnouz, trazendo “um pequeno toque de vulgaridade visual”, nas palavras da própria diretora de fotografia, que dialoga de forma excelente com a proposta melodramática do diretor.


Outras parcerias que se revelam bem-sucedidas são a edição de Heike Parplies (“Toni Erdmann”) e o roteiro de Murilo Hauser, que conseguem tecer uma bela costura narrativa que não abandona o espectador nas quase duas horas e meia de duração do longa.

É, aliás, esse bem-sucedido movimento dramático que permite ao espectador superar eventuais antipatias nascidas nas pouco convincentes cenas iniciais em que as duas protagonistas interagem. Curiosamente, o laço afetivo entre as irmãs não aparece quando as duas estão em cena, mas sim pela presença invisível de cada uma na vida da outra.

No mais, qualquer fragilidade do início é compensada pela força magistral das sequências finais protagonizadas por Fernanda Montenegro. A atriz de quase 90 anos consegue transmitir, em poucos minutos, uma carga emocional altamente paradoxal: de um lado, toda uma vida de resignação e sublimação de desejos, e, de outro, a experiência de vivenciar, tardiamente, a vida ignorada de sua irmã.

“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” é um filme emotivo, pulsante e sombrio sobre duas irmãs —e tantas outras mulheres— penalizadas por uma cultura que as impediu de escolher seu próprio destino.

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