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Livros

Annie Ernaux faz da memória um admirável prazer literário

Autora francesa cria uma narrativa diluída e nebulosa no biográfico 'Os Anos'

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Os Anos

  • Preço R$ 52,90 (232 págs.)
  • Autor Annie Ernaux
  • Editora Três Estrelas
  • Tradução Marília Garcia

Uma das receitas infalíveis para qualquer escritor consiste em dar fluência ao enredo por meio do relato autobiográfico, acompanhado pela colagem de impressões históricas sobre a sua própria época.

A francesa Annie Ernaux, nascida em 1940, entrega-se a esse exercício um tanto indolente. Mas seu texto é tão brilhante e agradável que um livro como "Os Anos" provoca uma intensidade admirável de prazer literário.

A autobiografia predomina entre os 20 títulos que Ernaux publicou a partir de 1974. "Os Anos", de 2008, recebeu os prêmios Marguerite Duras e François Mauriac, provável forma de reconhecimento de uma autora meio escondida como professora de liceu num subúrbio de Paris e que não circulou pelos salões das celebridades literárias francesas.

Annie Ernaux não fez um livro clássico de memórias, em que os personagens têm nomes próprios —a mãe, o primeiro marido, os dois filhos— e aparecem entrelaçados por uma soma de atributos singulares e bem definidos.

A escritora francesa Annie Ernaux, em Paris, em retrato de 2001 - Leemage/AFP

A narrativa, ao contrário, está sempre diluída em cenários nebulosos, em que a narradora, apresentada em cada sequência pela descrição de fotografias acinzentadas, aparece simplesmente a partir do pronome pessoal "ela".

Pois "ela" sente na pele as carências agravadas pela pobreza de uma França no imediato pós-Guerra, em que o chão da cozinha é de terra batida e a pequena casa, na aldeia da Normandia, tem um quartinho precário do lado de fora que funciona como banheiro.

É uma França em que os corações são pautados pelo catolicismo, onde é o pároco quem dita certo e errado. O laicismo funciona como um contraponto nacional, com a política e a sucessão de gabinetes efêmeros da Quarta República e com a Guerra da Indochina, que serviu de ensaio vexaminoso para outra derrota colonial, a da Argélia.

Mas o Estado laico é também o do sistema de ensino, no qual "ela" faz o fundamental e o secundário, vai à universidade e se forma em letras.

A narradora se entrega, então, à confecção de um painel com os valores mais ou menos consensuais de uma França que quase implodiria, com De Gaulle dentro dela, após as barricadas estudantis de 1968.

Há o hedonismo pelo consumo, a compra da casa própria, os eletrodomésticos impensáveis a gerações anteriores, o cair com os fundilhos nos confortos e armadilhas da classe média. É nesse ponto, no entanto, que Annie Ernaux passa a lidar com referências ao ambiente cultural francês.

A narradora cita por três vezes Bernard Pivot, sem explicar que ele tinha um programa na TV pública sobre literatura. Ou, então, Madame Soleil, conhecida cartomante dos anos 1960. Ou ainda o Renault-4, veículo de quem subia um pouquinho na vida e não precisava mais circular com o barulhento Citroën 2-CV.

É plausível, no entanto, ter um painel dos mais completos e comoventes sobre uma França dentro da qual evoluía —no sentido coreográfico do verbo— toda uma geração.

Ernaux se torna uma etnógrafa competente. Discorre pudicamente sobre o erotismo praticado nos tempos anteriores à pílula e lamenta que a liberdade sexual tenha sido interrompida pela Aids.

Lembra com abundância de observações pertinentes as eleições presidenciais, sobretudo a de 10 de maio de 1981, na qual foi eleito o socialista François Mitterrand —a esquerda estava praticamente em jejum desde 1936. E também lamenta a mesmice implantada por essa esquerda.

"Ela", a narradora, possui um olhar afiado ao discorrer sobre a substituição das fitas VHS pelo CD, a chegada dos primeiros microcomputadores como utensílios domésticos, o 11 de Setembro e a insegurança que o terrorismo islâmico provocou na França.

Em resumo, um livro delicioso, para ser lido de uma vez.

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