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Pedro Diniz

Bar símbolo da luta gay cai em decadência sem esquecer a fúria

Stonewall foi origem de protestos em 1969, que inspiraram paradas pelo mundo

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Ao entrar pela primeira vez no número 53 da rua Christopher, em Nova York, é normal esperar mais do ambiente. Algo decrépito, o lugar tem paredes forradas com madeira escura que, iluminada pelo amarelo dos abajures e pelos feixes de luz vermelha no teto, conferem um ar de inferninho ao espaço apertado por balcão, sinuca e mesinhas.

O bar Stonewall Inn fica em frente à praça onde estátuas de George Segal retratam homossexuais conversando. Ali, na esquina com a rua Gay, mais placas vêm se juntando à original. Elas enumeram rua Lésbica, Bissexual, Trans, Queer, Intersex, Asexual, Não-Binário, Pansexual, Dois Espíritos, além do símbolo "+".

 

Não haveria placas suficientes para resumir o valor simbólico desse microcosmo de inclusão que se tornou, em 2016, o primeiro monumento LGBT dos Estados Unidos e, há exatos 50 anos, virou o jogo na luta por direitos civis.

Se hoje a cultura pop se regojiza com "RuPaul's Drag Race", reality show que elege a drag queen mais glamorosa, e a algumas estações de metrô daquele miolo de Greenwich Village jovens gays podem dançar nas boates do distrito de Hell's Kitchen é porque alguém começou a jogar moedas contra a polícia naquele 28 de junho de 1969.

Na data, policiais fariam mais uma batida contra a venda de álcool ilegal nos bueiros controlados pela máfia. Os alvos eram locais frequentados por "doentes mentais", como gays eram classificados à época pela Associação Americana de Psicanálise.

Prenderam 13 pessoas naquela madrugada, a maioria funcionários do bar e "disfarçados", como eram chamadas as drags. Quem esteve ali ouviu, ao contrário do que a história reproduziu nos jornais e nos boletins de ocorrência, os cassetetes quebrando ossos.

Cansados da marginalidade a que seus desejos eram relegados, os frequentadores atiraram todo tipo de parafernália contra os policiais. O estilhaço das garrafas, os gritos e as sirenes duraram quatro noites, com mais gente se juntando à rebelião que, no último dia, viraria a primeira marcha do orgulho LGBT. Instituiu-se, assim, o modelo de manifestação replicado no mundo.

Mas a marcha batizada Stonewall 50, possivelmente a maior do gênero em toda a história dos movimentos organizados, a ser celebrada no próximo domingo, não conseguirá ilustrar o outro lado das moedas atiradas naquele dia.

À luz dos acontecimentos anteriores e posteriores à ebulição, pode-se dizer que as revoltas deram visibilidade à causa. Stonewall tirou do armário o sentimento de libertação, cunhando identidade e uma data para a virada de chave —mas não impediu a homofobia dos anos seguintes.

Basta constatar que só em 2007 o bar reabriu com seu nome original, e sem um terço do espaço. E só em meados dos anos 1990 as estátuas idealizadas por George Segal na década de 1970 foram colocadas em praça pública, porque não tinham incentivo das autoridades e enfrentavam o puritanismo instalado no pós-Aids. Além disso, só em 2011 o estado de Nova York reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A rebelião ocorreu numa época em que países reviam padrões de certo e errado, a juventude branca abraçava a liberdade sexual, enquanto música, moda e cinema convergiam para vender uma renovação comportamental e estética.

Três anos antes, em San Francisco, na costa oeste americana, um grupo de transexuais se revoltou contra abusos da polícia na Compton's Cafeteria, próximo ao nascente distrito gay de Castro. Em agosto de 1966, uma delas jogou café na cara de um policial que lhe passou a mão no corpo, dando gatilho para um saldo de mesas quebradas e um carro de polícia destruído.

O documentário "Screaming Queens" (2005), de Victor Silverman e Susan Stryker, traz relatos de mulheres trans que participaram ou presenciaram os acontecimentos, cujos registros na delegacia sumiram sem explicação com o passar dos anos e, por isso, não ganharam holofotes.

Um ano depois disso, em 1967, um parlamentar britânico conseguiu aprovar, por só um voto de vantagem, a Lei de Ofensas Sexuais, que excluía a homossexualidade do rol de crimes.

Foi uma espécie de gambiarra, mas com efeitos práticos. Um remendo poderoso que meio século depois ainda dá a tônica de muitas conquistas da comunidade LGBT.

Exemplo recente ocorreu no Supremo Tribunal Federal do Brasil, que lançou mão de um remendo para colocar a homofobia dentro do escopo de crimes de racismo, enfim criminalizando uma prática que mata centenas de pessoas por ano, mas que nenhum governo enfrentou.

O episódio de Stonewall ilumina a relevância de se promover as paradas do orgulho LGBT, que governos autoritários costumam proibir ou temer.

Na Rússia, por exemplo, não é crime ser homossexual, mas as marchas são proibidas sob a lei de propaganda gay, aprovada em 2013, que pode estimular a homofobia pelo simples fato de deixar no armário as manifestações públicas.

É contra essas pontas soltas, mascarada por termos como "mimimi" ou em gambiarras constitucionais que podem tanto prover liberdades quanto tolhê-las, como no caso russo, que Stonewall e todas as marchas apontam os dedos nas passeatas.

O bar da rua Christopher de Nova York pode não ter a imagem vistosa das conquistas do milênio e nem ter um palco hoje à altura de Madonna, que voltou a atenção do mundo para o endereço quando apareceu ali, minutos após a virada deste ano, para um show surpresa.

Mas mantê-lo no escuro de uma caixa fora de moda e descolorida faz lembrar seus novos frequentadores de uma outra caixa, essa solitária e ainda mais escura, onde nenhum deles desejaria voltar.

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