Chama Festival reúne artistas trans contra o 'cis'tema em São Paulo

Programação conta com músicos, estilistas e performers que discutem questões de gênero

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São Paulo

Elas falam "corpas", no feminino, para designar seu físico transmutado em mulher. Elas denunciam as opressões do "cistema", com "c" mesmo, dominado por pessoas cisgênero, aquelas que se identificam com o sexo designado no nascimento. Elas são chamadas de transexuais e travestis, mas gostam do termo transvestigêneres, criado por mulheres trans.

Se linguagem é poder, a semântica e a produção cultural de uma nova geração de artistas trans se desenham para a ocupação de novos espaços.

Uma amostra dessa potência está no 1º Chama Festival - Trans/Versalidades, que reúne cerca de 25 artistas, performers, estilistas e cantoras da cena travesti nesta quinta-feira (20), a partir das 13h, no Teatro Oficina, em São Paulo.

As dez horas de evento foram concebidas pela Casa Chama, uma organização voltada para os cuidados com pessoas LGBTQ+ fundada pelo artista transgênero Rodrigo Franco, 34, há sete meses e, desde então, um projeto coletivo em constante mudança.

"A Casa Chama é um lugar de ação. Já fizemos mais de 250 ações quase sem grana nenhuma, prova de que é possível interferir diretamente na realidade, para além do ativismo teórico", explica Franco. "Menos close e mais corre é um dos nossos lemas, que pegamos emprestado da cantora trans Alice Guel."

O outro lema é a própria essência do projeto: "Quem acolhe é acolhido. Quem é acolhido acolhe". Isso porque a Casa Chama surgiu da necessidade de acolher pessoas trans em situação de vulnerabilidade. O projeto fornece alimentação, acompanhamento de projetos e assessoria jurídica, principalmente em processos de retificação, quando é possível registrar o nome social nos documentos.

"Organizar a vida jurídica é tirar essas pessoas da marginalidade", avalia Franco, que também facilita o acesso a atendimentos médico, odontológico e psicológico e a estratégias de redução de danos.

"Criamos infraestrutura para gerar autonomia para essas 'corpas' para a qual contamos com colaborações de aliados", conta ele, que já recebeu doações financeiras de uma colecionadora de arte e uma biblioteca inteira da curadora Lisette Lagnado.

"Ao mesmo tempo, o rolê das artes tem se mostrado o mais transfóbico de todos", critica Franco. "Quase todas as meninas que atendemos atuam na prostituição, que se apresenta como primeira opção de renda, mas muitas são também artistas. Cuidamos desta segunda opção", conta ele, que é casado com a premiada artista plástica Cinthia Marcelle, com a qual dividia o espaço da Casa Chama também como ateliê.

Foi durante uma reunião de trabalho de Marcelle que surgiu uma oportunidade determinante. Admirada com o trabalho da Casa Chama, a atriz Camila Mota, da Associação Teatro Oficina, ofereceu o espaço projetado por Lina Bo Bardi para uma festa.

O evento virou festival beneficente para angariar fundos para a Casa Chama, mas um dilema ético transformou a premissa do evento. "A gente não poderia fazer as 'corpas' trabalharem de graça, e também não faria sentido contratar um artista cis que funcionasse como chamariz. A solução foi fazer o festival contratando as trans, que estão sendo remuneradas corretamente para isso."

Segundo Franco, além das artistas, a equipe de produção é quase toda composta por pessoas trans. No total, 36 homens e mulheres trans participam do evento. "A gente privilegia os mais vulneráveis mesmo", admite Franco.

Aretha Sadick e Explode! apresentam performance na mostra "Arte-Veículo"
Aretha Sadick, artista e ativista que participa da abertura do Chama Festival - Divulgação

A programação de abertura do festival é de três artistas e ativistas que participam intensamente da Casa Chama: Guilhermina Urze, Aretha Sadick e Leona Jhovs.

Na sequência, manifestos e rodas de conversa sobre branquitude são permeados por performances do coletivo Animalia e dos artistas Pilantropov e Ney Ubhatovyanjañaka.

As temáticas de gênero na moda se apresentam no festival com as marcas Translúdica e Bandeyra Nacional e com as criações do estilista e ativista Vicente Perrotta, 40, que fundou o Ateliê Transmoras, de acolhimento e criação para pessoas trans, numa ocupação na Unicamp.

"Meu trabalho se dá a partir da destruição da binariedade e das opressões que a indústria da moda criou. Faço coleções sem gênero e sem tamanho para atacar as violências que as roupas carregam, como gordofobia, transfobia, racismo e misoginia", explica Perrotta. "Quero construir a imagem da travesti estabelecida, e não daquela obrigada a viver na margem, completamente invisibilizada."

A expressão trans na música é representada por sete artistas, entre os quais se destacam a performer Marina Matheus e também a rapper transativista MC Dellacroix.

Matheus apresenta o show Trava, em que vive canções brasileiras e latinas —com a participação de Ava Rocha.

Já Dellacroix, expoente da cena no rap nacional, leva ao festival suas composições, que misturam discurso e fervo a partir da perspectiva de uma "travesti, preta e periférica". Ambas são artistas da gravadora e produtora musical Travabizness, voltado para a produção de cantoras trans.

"O festival é um espaço que a gente só conquistava no nosso imaginário. Tudo sempre foi muito fechado para nós", conta Urze, que é formada em marketing e se tornou articuladora da Casa Chama.

"É sobre nós, mas queremos chegar ao público cisgênero. A gente se torna diferente a partir do olhar do outro. Se o problema da transfobia é dos héteros e dos cis, queremos que conheçam a nossa voz."


Chama Festival

Qui (20), das 13h às 22h, no Teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, São Paulo). Ingr.: a partir de R$ 60. 18 anos

Destaques

Performance
Coletivo
Animalia
@animalia.projeto

Projeto de artistas LGBTQ+ ganhou fama no circuito de festas de São Paulo ao abordar a transição de espaços e corpos em performances com som e imagem

Moda
Vicente Perrotta

@vicente_perrotta
Estilista e ativista transvestigênere que subverte o caráter binário e padronizado da moda, criando roupas sem gênero e sem tamanho a partir de descartes da indústria.

Música
Marina Matheus - 19h35
@mmarinamatheus
Cantora, intérprete, atriz e performer trans, estreia o show TRAVA com banda de piano, baixo e bateria e participação especial de Ava Rocha.

MC Dellacroix - 20h50
@mcdellacroix
Voz emergente do rap nacional, suas performances reúnem música, dança e discurso a partir da perspectiva da artista "preta, periférica e travesti"

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