'Da Vinci jamais faria essa mão monótona', diz ex-consultor do Louvre sobre 'Salvator Mundi'

Museu prepara grande exposição do artista e inventor, mas não confirma exibição da controversa obra

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Paris

A vinda do Salvador deixou de ser, nos últimos tempos, objeto de expectativa e crença apenas em templos. Na sacristia do Louvre, uma das catedrais da arte, muita gente hoje aguarda a Revelação.

O mistério envolve a exibição do quadro “Salvator Mundi”, atribuído a Leonardo da Vinci, na grande exposição que o museu prepara para outubro em lembrança aos 500 anos de 
morte do artista e inventor.

Pintura 'Salvator Mundi', atribuída a Leonardo da Vinci - Reuters

Vendida em 2017 a um príncipe saudita pelo preço recorde de US$ 450 milhões (R$ 1,7 bilhão, em valores atuais), a obra tem paradeiro desconhecido. Deveria ter sido mostrada na filial do Louvre em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, no fim de 2018, mas a instituição adiou indefinidamente sua apresentação duas semanas antes da data prometida.

Surgiu então o rumor de que o óleo estaria guardado em um depósito em Genebra. Há alguns dias, reviravolta: um iate do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, seria o pouso atual do Cristo de Da Vinci, segundo o marchand Kenny Schachter.

MBS, como é conhecido o monarca, tem sido citado desde o leilão de dois anos atrás como o verdadeiro proprietário da pintura.

A incerteza em torno da identidade do dono espelha a opacidade da própria origem do “Salvator Mundi”. Ninguém consegue cravar que se trate mesmo de uma criação de Da Vinci —ou, vá lá, assinada exclusivamente por ele.

A dúvida vem sendo alimentada por especialistas na obra do italiano em entrevistas e livros. Um dos mais ruidosos é o historiador e crítico de arte inglês Ben Lewis, que lançou há pouco “The Last Leonardo” (o último Leonardo), sobre as circunstâncias de produção do retrato e as dúvidas relativas a sua atribuição.

Ele fala em um “Da Vinci da pós-verdade”, dada a impossibilidade de se confirmar a autoria do quadro. O selo de autenticidade foi conferido por uma comissão de experts montada pela prestigiosa National Gallery, em Londres, pouco antes da abertura de uma mostra na instituição, em 2011.

Mas Lewis descobriu, ao longo de entrevistas, que o parecer do colegiado foi, na melhor das hipóteses, mal interpretado pelos responsáveis pela exposição.

“O que houve foram discussões informais. Ninguém perguntou diretamente: ‘Isto é ou não um Da Vinci?’”, afirma o crítico em entrevista à Folha

“Os membros concordaram polidamente que poderia ser dele, mas não tinham certeza, porque, entre outras coisas, o quadro estava muito danificado, principalmente na região dos olhos do 
Cristo e na da órbita.”

Para ele, conferir o crédito pelo Salvator ao pintor radicado por boa parte da vida em Florença é quase um ato de fé, “uma reação baseada em emoção, não em fatos, um excesso de otimismo”.

Há quem apoie a crença na assinatura de Da Vinci no fato de um inventário das coleções do rei inglês Carlos 1º ter listado, um ano após sua morte, uma certa “imagem de Cristo feita por Leonardo”.

Ocorre que a insígnia da Coroa foi encontrada na face traseira de um quadro com a mesma iconografia e que hoje está no museu Pushkin, em Moscou. O “Leonardo” a que se refere o apontamento pode ser um assistente do artista ou simplesmente um imitador de fora de seu círculo.

Além disso, aponta Lewis, na época em que se acredita que a obra tenha sido feita (em torno de 1500), Da Vinci já se dedicava muito mais a pesquisas sobre matemática, física e anatomia do que a pincéis.

“A essa altura, ele fazia esboços, mas eram seus pupilos que pintavam de fato, sob sua supervisão. Eventualmente, retocava ou finalizava alguma tela. Era um ateliê, precisava dar dinheiro [com produção em escala].”

O crítico chama a atenção também para a frontalidade do Salvator, quando o italiano se notabilizou por retratos sutilmente oblíquos, em que o corpo faz uma torção.

O historiador e pintor Jacques Franck, que já deu consultorias para o próprio Louvre sobre a técnica de Da Vinci, é outro a destacar a estranheza da representação do Cristo, na comparação com trabalhos atribuídos há mais tempo ao autor da Mona Lisa.

“A mão direita da figura é falsa, faz um gesto impossível. O dedo parece poder girar sobre si mesmo”, avalia. “Da Vinci fez textos muito precisos sobre articulações, tendões e ossos, é um dos maiores anatomistas da história. Jamais faria essa mão monótona, mecânica.”

Na opinião dele, as dobras na túnica do retratado também são de fatura tosca, inferior ao padrão que se associou até aqui ao artista. E há falhas de volume e proporção na esfera que o personagem sustenta com a mão esquerda.

Além disso, sublinha Franck, não existem quaisquer menções ao Salvator nos escritos de Giorgio Vasari, primeiro biógrafo de Da Vinci e, o mais importante, quase contemporâneo dele.

Para o historiador, Gian Giacomo Caprotti, conhecido como Salaì, pode ter sido o criador de fato da obra. Trata-se de um dos colaboradores mais próximos do artista, tanto assim que chefiava o ateliê na ausência do titular.

Segundo ele, uma tecnologia que analisa as camadas de tinta de um quadro mostrou analogias claras com o método de Salaì. “Mais do que isso, não consigo dizer. Só sei que, por trás de tudo, há um mercado de arte, arranjos entre casas de leilões, museus e colecionadores”, lança Franck. “É óbvio que a exibição da obra como sendo de autoria de Da Vinci lhe deu uma promoção extraordinária.”

Procurado, o Louvre parisiense mantém a cortina de fumaça, tanto sobre a atribuição do quadro quanto sobre sua localização atual. Confirma ter pedido o empréstimo da tela, mas não diz a quem.

Em relação à autoria, diz não se expressar sobre peças que não pertençam a seu acervo. “Você saberá [a quem ela é creditada] na exposição, se a obra for emprestada.”

A evasiva dá fermento ao ceticismo. O Salvador, ao que parece, não vai se submeter à prova do ver para crer.

Cronologia


Sécs. 15, 16 e 17 A obra teria sido uma encomenda do rei Luís 12, da França; alguns dizem que depois ela passou pelas cortes dos ingleses Carlos 1º e 2º no século 17

1900 É adquirido pelo britânico Francis Cook; quadro é creditado a Bernardino Luini, assistente de Da Vinci

1958 É vendido na Sotheby’s por 45 libras

2005 Marchands americanos o compram por cerca de US$ 10 mil, crendo que a autoria seja de Da Vinci

2011 Após autenticação por experts, tela integra exposição na National Gallery, em Londres

2013 Obra é vendida por US$ 80 milhões e, pouco depois, revendida a US$ 127,5 milhões

2017 Torna-se o quadro mais caro da história ao ser negociado por US$ 450 milhões

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