Em Portugal, Fado Bicha tira o tradicional gênero do armário

Com glitter e cílios postiços, dupla aposta em versões com mais diversidade

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Lisboa

Os característicos acordes da guitarra antecipam que está começando um fado. O intérprete não demora a soltar o vozeirão. “No Mercado da Ribeira, há um romance de amor. Entre o André, que é peixeiro, e o Chico, que é pescador.”

De barba por fazer, envergando um casaco de oncinha, cílios postiços e muito glitter, Lila Fadista entoa a canção sobre a tórrida história de dois homens. 

Juntos, Lila e o guitarrista João Caçador formam o Fado Bicha, uma das sensações da noite alternativa lisboeta (e que tem cada vez mais espaço fora dela).

Gênero conhecido pela sisudez dos intérpretes e pelo tom melancólico das canções, o fado português ganha uma inesperada leveza ao incorporar temas e experiências do universo LGBT.

“O fado, e a música portuguesa em geral, não costumam ter muito espaço para a diversidade. Quisemos contar as nossas próprias experiências e a de outros que antes não se sentiam representados”, diz o cantor Tiago Lila, que nos palcos adota a alcunha de Lila Fadista, a performática voz da dupla.

Lila conta que chegou a se inscrever na escola de fado da Mouraria, uma das mais tradicionais instituições na formação dos fadistas em Portugal, mas que acabou desistindo por não se encaixar nos padrões esperados por quem se envereda pelo gênero musical.

Decidiu então se aventurar num projeto solo, cantando à capela versões com mais diversidade de fados tradicionais. Em uma das apresentações, ele acabou conhecendo o guitarrista João Caçador. Completava-se assim, há cerca de dois anos, o Fado Bicha.

A dupla lançou seu primeiro videoclipe em abril, batizado de “Namorico do André”. Trata-se de uma versão gay de “Namorico da Rita”, imortalizado na voz de Amália Rodrigues, maior referência do fado.

Além de conter cenas picantes do amor de André e Chico, a produção incorpora várias referências ao universo LGBT. Uma das locações do vídeo é o bar Finalmente, point gay na região do Príncipe Real, espécie de Frei Caneca lisboeta.

Além de temáticas relacionadas ao mundo gay, o Fado Bicha também aposta em letras politizadas e com crítica social.

Em “Lisboa, não Sejas Racista”, uma versão da famosa “Lisboa, não Sejas Francesa”, também celebrizada por Amália Rodrigues, a dupla relembra episódios de violência policial e discriminação contra negros e imigrantes. Mais leve, a versão de “Nem às Paredes Confesso” acabou como “Crónica de um Maxo Discreto”.

A dupla se prepara agora para divulgar também canções originais. O guitarrista João Caçador diz admirar a maior diversidade da música brasileira e enumera as diversas ligações que o projeto tem com o Brasil.

“O primeiro show foi no bar de um brasileiro. Muitas das pessoas que nos apoiam desde o início são brasileiros que vivem aqui em Lisboa”, conta o músico.

Embora esteja há muito tempo associada à homossexualidade, especialmente no Brasil, a palavra bicha também significa fila em Portugal. Anos de contato com músicas, novelas e muitos imigrantes fizeram com que essa conotação ao mundo gay atravessasse cada vez mais o Atlântico.

“Nós já nos acostumamos a usarem ‘bicha’ como um insulto, especialmente relacionado a um homem gay que tem características que são consideradas femininas. Quisemos nos apropriar disso, subverter essa lógica e tornar isso algo transgressor”, diz.

Embora o projeto esteja crescendo —e tocando em lugares cada vez maiores—, a dupla lida com muitas críticas, além de uma enxurrada de comentários preconceituosos nas redes sociais.

No tradicionalíssimo universo do fado, também há quem torça o nariz às experiências disruptivas com o gênero, considerado patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) desde 2011.

Quanto a isso, o Fado Bicha diz não se intimidar. “É o preço a pagar. Não vamos recuar”, sentencia Lila.

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