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Ian McEwan investiga a natureza de máquinas e homens em livro

Escritor britânico lança no país seu novo romance, 'Máquinas Como Eu', sobre efeitos da inteligência artificial

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O escritor britânico Ian McEwan
O escritor britânico Ian McEwan - Damien Grenon/AFP
São Paulo

Nossas ambições, escreve Ian McEwan, eram tão sublimes quanto mesquinhas. Queríamos realizar um mito da criação. Sentíamos um enorme amor-próprio. Desejávamos ser imortais. Por isso implantamos nossa consciência dentro do metal frio de uma máquina.

É assim o passado que McEwan imagina em seu novo romance, “Máquinas Como Eu”, que chega agora às livrarias. O ano é 1982, e os primeiros robôs iguais a nós chegaram às lojas. Sim, eles são cópias perfeitas dos seres de carne e osso, em tese até na consciência. O tema do livro é a inteligência artificial.

“Estamos tentando ser Deus, mas não somos. Essa é nossa forma de colocar nossa própria consciência em um robô e, assim, podermos viver eternamente. É um tema ancestral. Está na história de Jasão e os Argonautas, no Gênesis”, diz o escritor.

Ao imaginar um passado alternativo, um dos autores mais celebrados do mundo faz uma incursão na ficção científica —McEwan odeia essa definição, diga-se. “Acho que o tema central do romance é o que constitui a nossa consciência.”

Nesse passado, os Beatles ainda lançam discos, o Reino Unido perdeu a Guerra das Malvinas e Alan Turing, o pai da computação —que era gay, sofreu castração química e se matou ao comer uma maçã com cianeto— está vivinho da silva.

O protagonista, Charlie, rapaz formado em antropologia e um pouco trambiqueiro, resolve comprar um daqueles primeiros robôs. Não por acaso, os primeiros se chamam Adão, no modelo masculino, e Eva, no feminino —as mulheres são as primeiras a acabar.

Em casa, convivem o personagem, a vizinha com quem ele tem um caso, Miranda, e o robô. Ao longo de cerca de 300 páginas, o leitor verá a consciência de Adão evoluir e os dilemas que isso traz.

E ele tem um coração, é capaz de meter-se em um desatino de amor. Um dia Charlie ouve a namorada fazendo sexo com o robô —e surge um triângulo amoroso entre homem, mulher e máquina. Adão se apaixona, comete poemas horríveis.

O curioso é que, muitas vezes, a ficção científica é distópica, fala da sociedade como um todo e é cheia de paisagens devastadas. Este livro não. McEwan faz uma ficção que fala sim do mundo, mas é doméstica —vemos os efeitos da tecnologia principalmente pelo buraco da fechadura.

“Boa parte dessa tradição [da ficção científica] não me interessa. Mas tem outra que acho fascinante, que observa a possível reação à tecnologia. Como em ‘1984’, de George Orwell, ou em ‘Blade Runner’, que mostra um planeta destruído, lidando com a mortalidade dos robôs”, afirma o autor.

“Estou mais interessado em Adão como humano do que como máquina. Estou interessado no foco psicológico, em saber o que é a consciência da máquina. Se me perguntarem se é um livro de ficção científica, eu diria que não.”

De fato, talvez seja melhor o outro nome desse gênero —ficção especulativa. É um romance prenhe de especulações sobre o que é ser humano, o que é nossa consciência e as consequências de criar máquinas iguais a nós próprios. Pode superaquecer o cérebro do leitor.

“Uma tecnologia assim pode tornar a máquina mais consistente do que nós. Sabemos, por exemplo, que precisamos ser bons. Mas achamos difícil ser bons o tempo todo”, afirma McEwan.

Um exemplo com risco de spoiler: Miranda, a vizinha, cometeu um crime no passado para levar à cadeia um estuprador que provocou o suicídio de uma menina. Para isso, mentiu à Justiça. O que é ser bom nesse caso? Causar a punição a qualquer custo? Ou o vingança atenta contra o Estado de Direito, muito mais importante para a paz social?

“A noção de justiça é algo central no que quis escrever. Miranda deve ir para a cadeia [por falso testemunho]? Algumas pessoas acham que não, mas a inteligência da máquina tem consistência moral. Como lidaremos com nossas fraquezas? Como lidaremos com um humano artificial que pode ser moralmente superior a nós?”, diz McEwan.

Shakespeare paira como um fantasma em boa parte da narrativa. Adão é um grande conhecedor do dramaturgo; seu dono, embora nascido perto da cidade onde o bardo nasceu, nem tanto.

“Isso deixa Adão um pouco mais humano do que Charlie?”, ri McEwan. “Shakepeare é um fantasma na máquina. É o autor que melhor entendeu o que é o humano. O homem que escreveu ‘Hamlet’ com certeza sabia muito bem o que era nossa consciência e como descrevê-la.”

O resultado é algo entre o fascinante e o horripilante. Em dado momento, Adão começa a imaginar uma utopia na qual todos terão acesso ao pensamento de todos, com o fim da privacidade mental. Isso, diz o robô, acabaria com a ficção. Ele leu toda a literatura mundial —achou-a cheia de fracassos, enganos, traições, cobiça e estupidez. A interface cérebro-máquina, continua, acabaria com os conflitos e tornaria a literatura irrelevante.

“Tenho certeza de que vamos valorizar a literatura do passado, mesmo que nos horrorize. Olharemos para trás e iremos nos maravilhar com o modo como os antigos retrataram seus próprios defeitos, como urdiram histórias brilhantes e até otimistas a partir de seus conflitos, inadequações monstruosas e incompreensão mútua”, diz o personagem.

“É claro que eu discordo totalmente”, ri McEwan. “A descrição dessa utopia é um pesadelo. Isso é Adão em sua adolescência intelectual. A realidade seria mais complexo. Se todos tivessem acesso ao pensamento de 
todos, seria o fim dos casamentos. Mas achei divertido imaginar isso.”

No passado imaginado de McEwan, o Reino Unido partiu em uma cruzada patriótica para retomar as Ilhas Malvinas da Argentina —e perdeu a batalha fragorosamente. A derrota leva um político ao poder que quer tirar o país da Europa. Uma alegoria sobre o brexit?

“[A Guerra das Malvinas] foi um um momento no qual uma espécie de febre religiosa tomou o país. As pessoas, entendendo ou não o assunto, tinham posições muito fortes. Não quis lidar diretamente com isso [o brexit], mas meio que se infiltrou no romance pelo visto”, afirma o escritor.

Máquinas Como Eu

  • Preço R$ 54,90 (328 págs.)
  • Autoria Ian McEwan
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Jorio Dauster
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