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Cinema

'Memórias da Dor' adapta texto arrasador sobre a Segunda Guerra

Longa faz cinema a partir de relato de jovem que viu marido ir a campo de concentração

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Ilana Feldman

Memórias da Dor (La Douleur)

  • Classificação 12 anos
  • Elenco Mélanie Thierry, Benoît Magimel, Benjamin Biolay
  • Produção França, 2017
  • Direção Emmanuel Finkiel

Como filmar a espera, a dor, o silêncio, o infigurável?

Em "Memórias da Dor", que estreou na última quinta-feira (6), Emmanuel Finkiel lança-se ao desafio ao escolher adaptar para o cinema um dos textos mais pungentes sobre os efeitos arrasadores da Segunda Guerra

Em "A Dor", mistura de diário e narrativa biográfica, publicado apenas em 1985, a jovem Marguerite Duras relata a agonia de seus dias à espera por Robert Antelme, seu marido, deportado como prisioneiro político da França para o campo de Buchenwald, na Alemanha, em junho de 1944.

Escrevendo sempre no presente e com extrema precisão, Duras inicia seu relato com a seguinte nota: “'A Dor' é uma das coisas mais importantes de minha vida. A palavra ‘escrito’ não seria adequada. Encontrei-me diante de páginas metodicamente preenchidas com uma letra extremamente regular e calma. Encontrei-me diante de uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento, que não ousei tocar, e comparada à qual a literatura me envergonha”.

Face a tal advertência, como filmar um texto feito de clareza e dilaceramento, testemunho e invenção, para além da literatura?

Finkiel, que já havia enveredado pelas sequelas do Holocausto com o delicado e tocante "Viagens" (1999), ficção de forte apelo documental, tenta responder a essa pergunta fundindo dois relatos de Duras ("A Dor" e "O Sr. X, Aqui Chamado Pierre Rabier") e optando agora por uma grande produção.

Sua transcriação reconstitui com talento a tensa atmosfera da Paris sob ocupação nazista, as atividades da Resistência, o retorno dos prisioneiros e o dia da Liberação, tudo visto e sentido pelo ponto de vista de Marguerite.

Mas, diferentemente da dicção de Duras, seca e muitas vezes irônica (como no texto sobre sua relação com o agente da Gestapo Pierre Rabier), o filme está mais próximo de um drama formalista. Sua busca pela beleza, ancorada na voz excessivamente doce da atriz Mélanie Thierry e na dinâmica da câmera, com o frequente uso do desfoque, compromete e amortiza o assombro da obra original, tornando um tanto digesto aquilo que estaria no limite do suportável e do representável.

Evidentemente, Finkiel não precisaria fazer uma versão de "O Filho de Saul" e sua mise-en-scène está a anos-luz de um "A Lista de Schindler", mas a questão sobre a diferença entre um filme belo e um filme justo ainda deveria se colocar. Há certas coisas, dizia o crítico Jacques Rivette, que precisam ser filmadas com tremor e com terror –e a espera de Marguerite Duras, assim como o retorno de Robert Antelme, é uma delas.

É então quando Antelme retorna dos campos, morto-vivo, que o filme atinge seu ápice.

Como o próprio escritor viria a descrever em seu testemunho literário "A Espécie Humana", editado originalmente em 1947a incredulidade a respeito da experiência vivida pelos sobreviventes se traduz na impossibilidade de Antelme sustentar seu olhar diante do espelho. Ele não pode se ver. Sua figura, só pele e osso, é ilegível. Seu olhar, opaco, foi a primeira coisa a morrer.

O que pode o filme diante disso?

Finkiel, com extrema sobriedade e força poética, faz desse retornado dos campos da morte uma imagem na contraluz, cuja sombra nos lembra uma escultura de Giacometti fitando o mar. Nesse silêncio em que a guerra ainda se faz presente, a vida brota da areia, do vento e da potência imaginativa do cinema. Aqui, pela primeira vez Marguerite realmente vê Robert –e agora ele não só não morreu como realmente existe.

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