Montagem para 'Mãe Coragem' espelha atual flerte com o fascismo

Em montagem com Bete Coelho, peça de Brecht faz pré-estreia no festival Brasil Cena Aberta

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Mãe Coragem

Bete Coelho em cena de 'Mãe Coragem' Lenise Pinheiro

São Paulo

Bertolt Brecht escreveu “Mãe Coragem e Seus Filhos” em 1939, ano em que a Segunda Guerra começou. 

O autor, que tinha influência forte do marxismo, estava no exílio desde 1933, quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha. Conflitos militares já eram uma memória antiga, porém —o jovem Brecht  trabalhara como enfermeiro na Primeira Guerra Mundial.

Quando lemos as peças do autor que nos põem diante de histórias povoadas por soldados, o que vemos é uma espécie de testemunho poético. “Mãe Coragem” —que ganha agora montagem com Bete Coelho no papel central e Daniela Thomas na direção— também tem essa qualidade.

A peça faz pré-estreia no dia 6 de junho, dentro do festival Brasil Cena Aberta, em que serão apresentadas “Epidemia Prata”, da Cia. Mungunzá de Teatro, “Gritos”, da Cia. Dos à Deux, e “Fim”, de Felipe Hirsch, entre outras. O evento começa agora e ocupa unidades do Sesc e outros espaços.

Para comentar a realidade que ganhava corpo à sua volta com a ascensão dos nazistas, Brecht nos reporta à Guerra dos Trinta Anos, conflito do século 17 iniciado por questões políticas circunscritas a disputas entre católicos e protestantes e que, embora tivesse a Alemanha no centro, arrastou diversas outras nações europeias, como a Inglaterra, a França e a Suécia, com saldo de 8 milhões de mortes.

O autor apresenta, na peça, uma visão que vai além de questões militares. Ele identifica já naquele longínquo conflito a engrenagem mercantilista do militarismo e a associa à corrosão de um sentido de moralidade. Restará ao espectador questionar-se o que vem antes: o derramamento de sangue ou a degradação das virtudes éticas?

Em terra arrasada por essa deterioração de valores surge a figura de Anna Fierling, a Mãe Coragem, que passa a guerra lucrando ninharias com a venda de artigos diversos e vê três filhos morrerem. A personagem é, ao mesmo tempo, vítima e partícipe do universo que a envolve.

Na visão de Thomas, essa “terra arrasada” é fruto “de uma desumanização das relações” que precede a guerra. Coelho fala de dois momentos em que a ideia se torna patente: quando a personagem classifica a guerra como “bela fonte de renda” e a cena seguinte, em que apresenta seu ceticismo sobre períodos de paz, em que os miseráveis estão “fritos” do mesmo jeito.

Em uma das cenas mais emblemáticas da peça, quando Anna Fierling tem a possibilidade de negociar a execução de um de seus filhos com uma oferta em dinheiro, ela tenta reduzir ao máximo o valor do resgate exigido pelos militares e acaba perdendo o rapaz.

Embora ache que Mãe Coragem sempre faça “a pior das escolhas”, Thomas joga sobre a intérprete as possibilidades das contradições. “Em vez de a personagem ser uma representação do mal, em suas pequenas escolhas éticas terríveis, muita coisa depende da empatia da atriz que enfrenta essa personagem”, diz.

É inclusive conhecido o descontentamento de Brecht com a leitura que críticos fizeram de uma montagem de  1949, que tinha a alemã Helene Weigel no papel-título. Ele se surpreendeu quando muitos revelaram simpatia pela personagem, quando a peça propunha que houvesse um distanciamento crítico do espectador sobre suas ações. 

Thomas espelha a imoralidade de Mãe Coragem em uma época que com dificuldade podemos classificar como tempos de paz. Militares ocupam cadeiras no governo do país, e se esboça a possibilidade de guerra em um país vizinho rico em petróleo.

“A peça tangencia tempos atuais, esse momento de flerte com o fascismo não só aqui no Brasil, mas nos Estados Unidos e na Europa. Existe esse assombroso crescimento do nacionalismo de caráter fascista e esse fascínio com as guerras e com as armas, uma série de desejos que achávamos que eram etapas vencidas da civilização”, diz a diretora. 

Muito conhecida por atuar como cenógrafa e ter trabalhado com grandes diretores, como Gerald Thomas e Felipe Hirsch, Thomas criou para essa peça um cenário mais cru, em que o espectador vê as estruturas de uma arquibancada que conjuga espaço cenográfico e plateia.

“Terra arrasada é o que define a peça no meu entender. É um lugar em que se anda, anda e nada acontece. O cenário não tem alegoria, não tem localização”, diz. No piso, há um material que simula terra molhada. E ali “os homens chafurdam na lama criada por si próprios”. Ela diz que não atribui essa responsabilidade aos pobres retratados na peça de Brecht, “mas à ambição desmedida dos grandes”.

Concebido originalmente por Bete Coelho e o figurinista da montagem, Cássio Brasil, o projeto de “Mãe Coragem” se vale de uma espécie de direção compartilhada. 

Mais atuante como diretora de cinema, Daniela Thomas assume a função no teatro pela segunda vez. A primeira foi em “Da Gaivota”, adaptação para “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, com Fernanda Torres e Fernanda Montenegro no elenco.

Ela diz que agora houve uma colaboração com Coelho, atribuindo à atriz uma espécie de orquestração sobre as atuações. Em “Pentesileias”, elas já haviam assumido parceria semelhante. Coelho dirigiu adaptação de Thomas para tragédia do alemão Heinrich von Kleist, na qual também atuou.

Em “Mãe Coragem”, estão atores como Luiza Curvo, Amanda Lyra, Carlota Joaquina, Ricardo Bittencourt e Roberto Audio. A iluminação é de Beto Bruel, colaborador frequente de Felipe Hirsch.

Mãe Coragem

  • Quando 11/6 a 21/7. De ter. a a sáb.: às 20h30. Dom.: às 18h30.
  • Onde Sesc Pompeia, rua Clélia, 93
  • Preço R$ 12 a R$ 40
  • Classificação 12 anos

Destaques do festival Brasil Cena Aberta

‘Peça para Adultos Feita por Crianças’
Criação de Elisa Ohtake em que crianças interpretam adaptação de ‘Hamlet’ de William Shakespeare. Terça (4), às 19h, no Sesc Avenida Paulista

‘Antígona Recortada’
Adaptação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos para tragédia de Sófocles, sobre mulher que é proibida de enterrar seu irmão. Terça (4), às 21h, no Sesc Avenida Paulista

‘Cartas a Madame Satã’
O monólogo da Cia. Os Crespos aborda a trajetória de Madame Satã, transformista que foi um dos símbolos da noite carioca na primeira metade do século 20. Quinta (6), às 16h30, no Sesc 24 de Maio. 

‘Preto’
Espetáculo da Cia Brasileira de Teatro que fala sobre questões relacionadas ao racismo na atualidade e à intolerância frente às diferenças. Sexta (7), às 16h, no Sesc 24 de Maio. 

‘Epidemia Prata’
A peça relaciona o mito de Medusa, que petrifica aqueles que olham diretamente para ela, e o uso de crack. Sábado (8), às 11h, no Teatro de Contêiner Mungunzá.

Veja programação completa em brasil-cenaaberta.org

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