O que é vaporwave, a estética criada na música eletrônica e apropriada pela nova direita

Distópicas e semelhantes a VHS gasto, imagens remetem a futurismo retrô e inundam perfis bolsonaristas nas redes

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Imagens para a capa sobre fashwave e vaporwave

Imagem que usa a estética vaporwave com a frase: A igualdade é um falso deus Reprodução

São Paulo

A tradição não é o culto às cinzas, mas a preservação do fogo. Essa frase, algo apoteótica, acompanha uma estátua de inspiração greco-latina com uma espada em riste. Mas, fora a escultura, a imagem não tem uma estética classicista —com azul e lilás, ela remete mais a um VHS já carcomido pelo tempo.

A mensagem depreendida é evidente. O fogo —roubado dos deuses, metáfora da civilização—   está ameaçado e é preciso reavivá-lo. Os hunos que querem extingui-lo, no caso, podem ser os esquerdistas que se dedicam a confrontar os pilares da cultura ocidental, a atacar a família e a pregar uma sexualidade degenerada.

Essa imagem faz parte de um movimento disseminado. É a estética vaporwave, nascida de um ramo da música eletrônica, que foi apropriada pela nova direita em ascensão no mundo. Há quem a chame de fashwave, juntando a palavra “fascist” —mas, independentemente do nome que se dê, há uma produção visual em curso que é típica da nova direita. E ela já se dissemina também no Brasil.

Se você buscar vaporwave no Twitter, verá dezenas de perfis bolsonaristas com essa estética em seus avatares —ou postando memes que vão pelo mesmo caminho. 

Neste sábado (8) um dia depois de uma entrevista que o vice-presidente, Hamilton Mourão, deu à revista Época, o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe G. Martins, fez um post em latim no seu perfil do Twitter.

Era uma montagem a partir de versículos da carta de São Paulo aos coríntios, que diz que os homens viraram a “escória da terra, o lixo do mundo” —e reafirma a glória do espírito. Entre as respostas, surgiram alguns memes com o vice retratado como um pavão; todos dizem variações de “cala a boca, general”.

A imagem no topo do perfil de Martins na rede social tem a mesma estética, com um exército de cavaleiros acompanhado do famoso verso de Dylan Thomas: “Do not go gentle into that good night”, traduzido por Augusto de Campos como “Não vás tão docilmente nessa noite linda”. Um outro meme mostra o próprio Martins, com uma faixa preta nos olhos e a frase “audaces fortuna juvat” (a sorte favorece os audazes).

O vaporwave traz sempre um futurismo retrô, com uma influência clara dos anos 1980 e do visual do começo da internet. Suas imagens sempre remetem a uma TV antiga e mal sintonizada, com cores que lembram o néon e, por vezes, paisagens que parecem saídas da ficção científica —e, não à toa, há algo de distópico em muito dessa produção.

Imagens de ruínas aparecem aqui e ali. Um passeio pelo /pol/, famoso fórum que reúne militantes de direita no 4Chan, mostra várias. Uma delas traz as ruínas da catedral de Notre-Dame, em Paris, com a frase: “Nosso monumentos podem tombar, mas nosso fogo se levantará outra vez”. No /pol/, os usuários ensinam uns aos outros a criarem imagens do tipo.

Se até aqui a saudade do passado encontrava um meio de expressão na nostalgia hipster —com suas cervejas artesanais e bicicletinhas antigas—, o fashwave é um veículo da nostalgia conservadora. 

Enquanto no Brasil o vaporwave pelo visto se resume à paródia através de memes, no exterior há versões mais extremas dessa estética. Suásticas, pelotões nazistas e o próprio Hitler aparecem com frequência, como salvadores de um mundo assombrado por demônios.

Embora não obrigatórios, slogans acompanham as imagens quase sempre. São frases como “Amo mais o nome da honra do que temo a morte”,  “Revolte-se”, “Por aqueles que amamos —família, nação, povo”, entre outras. Nos Estados Unidos, já existe o trumpwave, com imagens no mesmo estilo, mas que retratam o presidente americano.

Utiliza-se muito a iconografia grega e romana nessas imagens. O que não é bem novidade, por ser um recurso apropriado por movimentos conservadores ao longo da história —“Olympia”, da cineasta Leni Riefenstahl, próxima do nazistas, começa com esculturas gregas que se convertem nos corpos de atletas.

“O que talvez seja mais típico do imaginário conservador é a recorrência a elementos clássicos. Eles correspondem à necessidade de inventar uma tradição e criar uma anterioridade que legitimaria o presente. Isso é marcante na extrema-direita desde os anos 1930”, diz Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Embalados nesse visual da internet, as imagens adquirem um contorno pop, e já estamos no campo da ‘alt-right’."

Não é só o aspecto visual do começo da internet. O fashwave está conceitualmente filiado a ela pelo remix e o sample, com a apropriação e reprocessamento de imagens já existentes, além da noção fluida de autoria. Elementos que, lá na virada para os anos 2000, embalavam uma utopia cibernética de esquerda, na qual a inteligência coletiva e o conhecimento livre produziriam uma nova democracia.

O vaporwave também nasceu na esquerda, em um braço da música eletrônica que surgiu no começo dos anos 2010 e tinha o mesmo nome. Mas ali a linguagem oitentista —que visualmente vinha da cultura pop e da publicidade— era uma crítica ao capitalismo e à sociedade de consumo.

Os artistas do vaporwave lançavam seus discos com pseudônimos. Eram canções fragmentárias, construídas a partir de samples de músicas pré-existentes, que se tornavam irreconhecíveis, como se fossem compostas pelos dejetos da sociedade industrial.

Um dos discos mais conhecidos foi “Floral Shoppe”, assinado por Macintosh Plus, que na verdade era uma designer e produtora americana. Ela pôs o álbum na internet com uma dezena de outros pseudônimos, numa recusa de participar de qualquer lógica comercial. Na capa do álbum, há um busto grego ao lado de uma foto de Manhattan.

No exterior, ramos mais radicais da direita adotaram não só o aspecto visual do vaporwave, mas a própria música —um gênero no qual a influência negra vinda do soul, do R&B ou do hip-hop, tão presente no pop contemporâneo, não aparece.

Anônimos adeptos do supremacismo branco chegam a postar suas músicas na internet. Um dos mais populares, chamado Cibernazi, teve seu canal excluído do YouTube por pregar discurso de ódio —mas a busca por “fashwave” no Soundcloud mostra diversas playlists com esse tipo de trilha sonora.

Há discursos de Trump musicados, dentro do estilo trumpwave. No Brasil não há nada semelhante, mas quem procurar por “bolsowave” vai ver músicas fazendo o mesmo com Bolsonaro, só que com pouquíssimos acessos.

Este é mais um capítulo da guerra cultural que opõe esquerda e direita. Há exemplos no passado, como o punk adotado por skinheads ou o metal abraçado por supremacistas. Mas, tanto antes como agora, a apropriação —e consequente subversão— é a regra.

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