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Cinema

Pauline Kael, a polêmica crítica de cinema, era multifacetada e vibrante

A escritora, conhecida pelo seu estilo incisivo e nem sempre respeitoso, completaria cem anos nesta quarta

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São Paulo

Poucos críticos foram tão controversos quanto Pauline Kael. Aliás, ela não foi uma crítica de cinema entre outros. A czarina da New Yorker primava pela pena afiada e pela inteligência, de sua opinião dependiam fracassos ou sucessos.

Não por acaso foi uma mulher de poder durante os anos em que escreveu para a famosa revista, desde 1968. Só saiu em 1991, por conta de um mal de Parkinson. Morreria dez anos depois, em 2001, com a fama intacta. Ela completaria cem anos nesta quarta-feira (19). 

A ex-estudante de literatura, arte e filosofia em Berkeley começou bem antes na crítica, nos anos 1950. E, para começar, não perdoou o Chaplin de “Luzes da Ribalta”, a que renomeou parodicamente como “Lamas da Ribalta”.

Seu trabalho chegou a um público amplo em 1965, quando foi contratada para a revista McCall’s. Não demorou muito a perder o emprego, graças à crítica ácida ao sucesso daquele momento, o musical “A Noviça Rebelde”, que definiu como “uma mentira coberta de açúcar, que o público parece disposto a engolir”.

Sem problema: logo foi contratada pela The New Republic, antes de se transferir para a New Yorker. Nunca abandonaria, ali, o seu estilo incisivo e nem sempre respeitoso.

Como ela própria dizia, sua escrita era um esforço para superar o pedantismo universitário. Com efeito, Kael notabilizou-se por abordar cada filme de uma maneira extremamente pessoal, à qual acrescentava a capacidade sem par de, pelo coloquialismo, atingir uma grande quantidade de leitores.

Via-se como espectadora, como alguém que, diante do filme, experimenta prazer ou ódio, diverte-se ou aborrece-se. E passa tudo isso para o papel, como se conversasse com a amiga com a qual foi tomar chá. Que ninguém se fie nessa aparente simplicidade. Graças à sua popularidade, tinha o poder de chegar perto dos grandes produtores e mesmo influenciá-los.

Seu amigo Paul Schrader queixou-se amargamente de ela ter dito a um produtor que ele era um ótimo roteirista, porém um mau diretor. Schrader acusou-a de, ao fazer isso, abandonar o papel de crítica e se tornar uma “insider” hollywoodiana. A amizade foi rompida por anos.

Uma mulher com tal poder tinha capacidade para colecionar polêmicas e inimigos, tanto quanto admiradores, como o também crítico Roger Ebert, para quem ela teve “uma influência mais positiva no clima cinematográfico na América, ao longo de três décadas, do que qualquer outra pessoa individualmente”.

Admita-se, Kael tinha uma rede de influências poderosa, de maneira que lançava jovens críticos, distribuindo-os por publicações em várias partes dos Estados Unidos. 

O coloquialismo e, sobretudo, o impressionismo crítico foram sua virtude e seu limite. Existe, claro, muita ousadia em esculhambar “2001, Uma Odisseia no Espaço”, grande xodó da ficção científica no final dos anos 1960, como “lixo disfarçado de arte”. Opinião não tão distante da de Andrei Tarkóvski, que fez “Solaris” e achava “2001” uma espécie de água com açúcar espacial.

Basta isso para deduzir que suas opiniões eram capazes de gerar polêmicas quase épicas, como a que a opôs a Andrew Sarris, o não menos célebre crítico do Village Voice. Sarris era adepto da “teoria do autor” (na verdade, o termo que ele popularizou nos EUA nunca foi aceito pelos franceses da Cahiers du Cinéma, para quem toda sua batalha era em torno de uma política).

Kael achava isso sem nenhuma importância. Era capaz de creditar filmes a seus atores, o que não era tão errado assim num “star system” como o hollywoodiano, mas não achava graça nenhuma em o pessoal vir com essa de que Hitchcock ou Hawks eram autores.

Talvez para referendar essa posição enfiou-se na talvez mais inglória das batalhas que levou adiante em sua carreira, quando houve por bem creditar “Cidadão Kane” não a Orson Welles, mas ao roteirista Herman Mankiewiecz (irmão mais velho de Joseph L. Mankiewicz).

Com efeito, a importância do roteiro é inegável, porém o filme é tão claramente marcado pelas imagens de Welles que, na melhor das hipóteses, se fosse para creditar mais alguém fora Welles pelo filme seria o diretor de fotografia, Gregg Toland.

Ocorre que nunca, antes ou depois, Mankiewiecz escreveu um roteiro com estrutura semelhante à de “Kane”, enquanto Welles esteve sempre próximo dela até o fim de seus dias. Mas ao sustentar a causa de ​Mankiewiecz, Kael opunha a tradição do roteiro hollywoodiano ao gênio rebelde.

Essa polêmica queimou seu filme junto aos cinéfilos, mais até do que o fato de nunca ter assimilado qualquer teoria para além do impressionismo crítico —algo que compensava com seu talento e inteligência.

Sua defesa do “homem do sistema” contra o “autor”, naquele caso, evidencia o fato de Kael ser formada dentro de uma ideia clássica do cinema (só uma visão clássica permitiria a ela se situar como espectadora falando a espectadores: o mesmo repertório, a mesma ligação com o cinema).

Paradoxalmente, foi ela que sustentou com entusiasmo os filmes dos jovens cineastas da nouvelle vague, aqueles, justamente, saídos da “política dos autores” e da crítica (tão distante da dela) dos Cahiers du Cinéma. 

Claude Chabrol, Eric Rohmer e, principalmente, Jean-Luc Godard devem a ela muito do fato de serem por vezes mais aceitos nos EUA do que na própria França. Godard, aliás, que ela sustentou filme após filme, ao longo dos anos 1960 e mesmo depois, em seu retorno ao cinema “comercial”.

Da mesma forma, também soube saudar a chamada “geração das escolas” nos EUA (Coppola, George Lucas, Spielberg, De Palma), de cujos filmes foi não raro uma entusiasta.

Para alguém que quis reduzir “Kane” a nada mais que um roteiro bem executado, tantos paradoxos e contradições, achados e equívocos terminam por compor um retrato que, ironicamente, lembra bem o quebra-cabeça de “Kane”: Kael foi uma escritora labiríntica, multifacetada, vibrante, complexa como o magnata da imprensa de que, no filme de Orson Welles, alguém tenta traçar o perfil. E fracassa.

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