Petrobras não pagou valores prometidos a filmes que premiou em 2018

Ficções e documentários foram homenageados pela empresa em mostras de cinema

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Shico Menegat em cena de 'Tinta Bruta', de Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon

Shico Menegat em cena de 'Tinta Bruta', de Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon Divulgação

São Paulo

Pelo menos quatro filmes premiados pela Petrobras em cerimônias realizadas nas principais mostras de cinema do país no ano passado não receberam os valores prometidos —entre R$ 100 mil e R$ 200 mil— mesmo que os títulos tenham sido usados para divulgar a marca da empresa estatal.

Os prêmios eram destinados a impulsionar a distribuição das obras em território nacional. O calote foi dado, por exemplo, no longa “Meio Irmão”, que tem direção de Eliane Coster e foi premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em outubro passado. A produção receberia R$ 200 mil. 

O mesmo aconteceu com o documentário “Torre das Donzelas”, que somou cinco prêmios na Mostra e no Festival do Rio, incluindo melhor filme escolhido pelo público. A ele seriam destinados R$ 100 mil. No Festival de Brasília, os documentários “Bixa Travesty”, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, e “O Outro Lado da Memória”, de André Luiz Oliveira, estão em igual situação.

Ao menos três dos filmes premiados colidem com questões ideológicas combatidas pelo governo Bolsonaro, lembrando que o presidente já pediu à direção do Banco do Brasil a censura de um anúncio que celebrava a diversidade de raças e de gêneros. 

“Torre das Donzelas” retrata a prisão de mulheres que, durante a ditadura que seguiu o golpe militar de 1964, combateram o regime, lutaram a favor de movimentos de esquerda e foram consideradas terroristas pelos governantes da época. 

Elas ficaram detidas no presídio Tiradentes, em São Paulo. Entre as entrevistadas, está a ex-presidente Dilma Rousseff. O conteúdo do filme vai de encontro com uma investida específica de Bolsonaro, a de promover uma revisão histórica à favor dos militares.

Já “Bixa Travesty” e “Tinta Bruta” são filmes que põem em cena questões de gênero e sexualidade, justamente aquelas que fizeram o presidente declarar, sobre o comercial do Banco do Brasil, que “qualquer empresa privada” teria “liberdade para promover os valores e ideologias que bem entendem”. 

Na visão do presidente, “o que não pode ser permitido é o uso do dinheiro dos trabalhadores para isso [a natureza do conteúdo da propaganda]. Não é censura, é respeito com a população brasileira”.

Questionados sobre o cancelamento dos pagamentos da premiação, os porta-vozes da Petrobras se restringiram a dizer que “o orçamento para patrocínios da empresa sofreu redução à luz do plano de resiliência da companhia, divulgado em março” e que “alguns patrocínios estão sendo reavaliados”.

O que aconteceu em março foram diversos cortes de patrocínios culturais que atingiram os festivais de cinema, além de companhias de dança e teatro, entre outros projetos. No total, foi anunciada a extinção de 13 patrocínios, que somaram R$ 12,7 milhões se considerados os últimos repasses.

Além de funcionarem como plataformas de exibição de novidades da indústria audiovisual, os festivais impulsionam produções mundo afora. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Festival do Rio, aliás, já relatam atrasos no cronograma por causa do cancelamento.

As duas mostras, porém, buscam completar o orçamento de seus projetos com outros patrocínios. No caso do evento paulistano, que está programado para outubro, a Spcine, o banco Itaú e a Sabesp serão parceiros. Os dois eventos estão inscritos na Lei de Incentivo à Cultura, a antiga Lei Rouanet, e ainda dependem de captação.

Segundo Renata de Almeida, diretora da Mostra de São Paulo, a fatia correspondente ao patrocínio da Petrobras em anos anteriores era de 30% dos R$ 6 milhões do orçamento total. “Quero manter a mostra com 300 filmes”, diz. “E tentaremos não cortar também a sessão no parque Ibirapuera, com a orquestra”, acrescenta, sobre um dos programas mais tradicionais da mostra.

Almeida também diz que “muitos convites para filmes estão parados” por causa da instabilidade causada pela perda do patrocínio, que existia desde o ano 2000. Sobre o cancelamento do pagamento do prêmio, ela avalia que “a Petrobras já foi beneficiada” ao divulgar sua marca em cerimônia realizada no Auditório Ibirapuera e, por isso, deveria honrar o compromisso.

Neste ano, afirma a diretora do festival, provavelmente não serão realizadas as premiações para distribuição.

Situação similar vive o Festival do Rio, também marcado para outubro. “Definitivamente, o cancelamento do aporte da Petrobras impacta muito o evento”, diz Ilda Santiago, diretora do projeto. Entre os programas criados a partir da parceria, ela cita sessões ao ar livre, apresentações de música de cinema com a Orquestra Petrobras e o restauro da sala de cinema Odeon.  

“Teremos de nos ajustar a novos tempos reduzindo o número de filmes”, diz. “Mas, para nós, não será uma opção fazer tantos cortes, o que acabaria levando a um evento não reconhecível para o público. Vamos tentar respeitar ao máximo as linhas curatoriais.”

Santiago ainda não desistiu de cobrar da Petrobras a entrega das remunerações da premiação do ano passado. “Estamos conversando para que os prêmios possam ser pagos, sem danos aos compromissos assumidos com o Festival do Rio e os filmes.”

“Estamos decepcionados com a decisão unilateral da Petrobras de não pagar os prêmios. Queremos acreditar que a empresa vai reverter isso”, diz Kiko Goifman, diretor de “Bixa Travesty”.

Por causa do curto intervalo entre o cancelamento do patrocínio e sua realização em julho, o Anima Mundi também relata dificuldades para montar sua programação.

“Não tivemos tempo hábil para desenvolver novas parcerias”, diz Fernanda Cintra, diretora executiva do evento dedicado a animações.

Ela diz que a próxima edição do festival corre o risco de ser realizada de forma precária, com restrições que comprometeriam até o aluguel de equipamentos de exibição. 

Segundo ela, o Anima Mundi já teve orçamento de R$ 2 milhões, dos quais 30% eram de aportes da Petrobras, numa parceira mantida há 22 anos. Nesta edição, o festival está tentando arrecadar R$ 400 mil em um site de financiamento coletivo, o Crowdfunding

Até a conclusão desta reportagem, o projeto havia arrecadado R$ 193 mil, 48% da meta. Faltam 14 dias para que o restante seja obtido. Caso contrário, as doações serão devolvidas aos colaboradores.

QUAL É A SITUAÇÃO DAS MOSTRAS HOJE?

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Ainda não dá por certa a sessão gratuita realizada no Ibirapuera, em que há participação de uma orquestra sinfônica. O evento também reportou atraso em seu cronograma e que convites a diversos filmes estão parados 

Festival do Rio
A produção da mostra informou atrasos no cronograma e considera reduzir o número de filmes participantes, evitando, porém, a perda de sua linha conceitual 

Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Realizado pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, a mostra poderá contar com recursos públicos extras. O secretário Cristiano Vasconcelos diz que é ‘lamentável’ o cancelamento do patrocínio da Petrobras

Anima Mundi
É a mostra que passa pela situação mais crítica, porque acontece em julho e não teve tempo de firmar novas parcerias depois que a estatal anunciou os cortes em março. Já teve orçamento de R$ 2 milhões e, neste ano, tenta captar R$ 400 mil no site de financiamento coletivo Crowdfunding 

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