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'A ação das missões evangélicas é arrasadora', diz estudiosa da tribo wari

Aparecida Vilaça participa da mesa 'Bendegó', que acontece nesta quinta-feira (11) na Flip 2019

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São Paulo

​Os wari, etnia indígena do interior de Rondônia, não enterravam seus mortos –eles comiam os cadáveres. Quando uma pessoa morria, os parentes a abraçavam e se colocavam embaixo do corpo durante dias. Aí, preparavam um fogo para assá-la. Os não parentes ficavam encarregados de comer o morto –pedacinhos pequenos da carne assada, que era levada à boca com auxílio de pauzinhos. Fazer o corpo desaparecer era o único jeito de elaborar o luto e garantir que o morto iria para debaixo d’água, no fundo do rio, no além onde todos se tornam jovens e felizes de novo.

Quando Watakao morreu em 2017, aos 85 anos, ele já tinha se convertido ao cristianismo há anos. Era chamado de Paletó porque, depois de muito resistir em usar roupas doadas pelos brancos, se apegou a um paletó e o usava sempre, sobre a pele nua. A antropóloga Aparecida Vilaça conviveu com Paletó por longos períodos, morando entre os waris em aldeias em Rondônia desde 1986. Ficaram tão próximos que ele passou a ser seu pai, e ela, sua filha. Quando Paletó morreu, Aparecida providenciou um caixão bonito e forrado, camisa social e sapatos lustrosos para ele ser enterrado.

A antropóloga Aparecida Vilaça ao lado de Paletó, seu pai indígena
A antropóloga Aparecida Vilaça ao lado de Paletó, seu pai indígena - Carlos Fausto/Acervo pessoal

Mas ela não conseguiu fazer o canto ritual fúnebre dos waris– que alterna choro alto e fala cantada. Quando soube da morte, não conseguiu parar de chorar. Escrever as memórias de Paletó– 'Paletó e eu - Memórias de meu pai indígena' (2018, ed. Todavia, 200 págs., R$28,90)–  foi uma maneira de elaborar o luto pela perda do pai e de contar a história da tribo– desde o período em que viviam sem nenhum contato externo, passando pelos massacres pelo homem branco até os dias de hoje, em que a maioria virou evangélico e abandonou de vez os rituais wari estudados e resgatados por Aparecida.  

O que a levou a escrever o livro? Quanto tempo levou?

Eu tinha feito muitas entrevistas com o Paletó e tinha um plano antigo de escrever sobre a vida dele. Comecei a escrever quando ele morreu, foi uma forma de desabafar. Escrevi muito rápido, em média levo dez anos para escrever um livro.

A senhora conta no livro que não conseguiu fazer o canto ritual dos wari quando Paletó morreu.

Assim que uma pessoa morre, os wari começam a entoar um canto fúnebre, em que você vai cantando o lamento e falando sobre experiências que viveu junto daquela pessoa. Os wari fazem isso até hoje, mesmo agora que eles enterram os mortos. Eu já tinha ouvido muitas vezes esse canto, tinha anotado, mas quando estava no celular com a minha irmã (indígena), ela cantando lá em Rondônia e eu aqui no Rio, eu não consegui. Chorava, chorava, chorava e não conseguia fazer aquele canto. Eu me comportei como uma enlutada branca, não como uma enlutada indígena. Não foi grave para eles, mas me senti frustrada. As coisas que eu fiz de longe – trocar o caixão, pôr uma roupa bonita – foi uma forma de eu me fazer presente. Depois eu comecei a escrever o relato sobre ele, também uma maneira de elaborar o luto.

Por meio da experiência do Paletó, que viveu 30 anos sem nenhum contato com o branco, a senhora conta as mudanças que ocorreram na vida dos wari. A vida deles, nas últimas décadas, melhorou ou piorou?

Da minha perspectiva, de uma pessoa de fora, piorou. Eles discordam, porque nos anos 60, foram dizimados, metralhados e morreram em epidemias, de forma que, agora, só pode estar melhor. Eles dizem sempre: 'olha, agora nós somos muitos de novo, temos remédios que curam as doenças (antibióticos), dinheiro, podemos comprar comida. Eles não conseguem conceber exatamente as perdas. Muita gente agora é diabética, tem pressão alta, problemas cardíacos. Eles estão comendo muito mal, muito açúcar, produtos sempre de má qualidade. Do meu ponto de vista, a questão da evangelização é muito negativa, os waris deixaram de ter os rituais deles. Eles não fazem mais nenhuma festa típica, agora só vão para a igreja e cantam os hinos. A ação das missões evangélicas é arrasadora, em termos culturais.

A senhora se preocupa com essa grande penetração das missões evangélicas entre os indígenas?

Demais, está totalmente contra os direitos constitucionais dos índios. Eles dizem que os índios não estão recusando, não há ninguém agindo com violência, que os indígenas estão escolhendo ser crentes. Só que eles fazem uma escolha sem ter muita dimensão dela, do que significa para as futuras gerações, para o contexto político, para eles reivindicarem direitos. Eles acabam sendo acusados de não ter mais uma vida tradicional. Isso tudo tem um peso que eles não dimensionam.

A senhora ainda faz as viagens à aldeia?

Faço. A última vez em que estive lá foi dezembro de 2017 e estou pensando em ir de novo em outubro. É um prazer, mas, para mim fica cada vez mais custoso fisicamente. Antes eu deitava em cima de esteira, hoje em dia minhas costas não aguentam. 

Uma das coisas que a senhora relata no livro é a forma com que os wari, e especialmente o Paletó, tratam a sexualidade, de uma forma sem pudores, sem tabus. Qual é a diferença entre essa abordagem dos wari e a do branco?

Agora está tudo muito diferente porque eles são evangélicos, muito mais recatados, falam menos sacanagem. Para eles, não era um problema ficar falando sobre desejo, sobre quem transou com quem. Muitas pessoas tinham relações fora do casamento. Eu até coloco no livro que, na verdade, eu era muito mais reservada, pudica, do que eles.

Quando eles começaram a se converter em massa ao cristianismo?

Teve duas épocas. Nessa aldeia do grupo do Paletó, a pacificação foi em 1961, e os missionários estavam nessa equipe de pacificação. Foi em 1969 que começaram as primeiras conversões. No início das epidemias, que os missionários tratavam com antibióticos, eles diziam aos índios: 'quem está curando vocês é Deus'. No início dos anos 80, eles se desconverteram porque, segundo eles, eles continuavam a morrer e Deus não estava protegendo. Quando cheguei lá em 1986, devia ter só uns três crentes lá na aldeia. Quando fui em janeiro de 2002, todo mundo tinha virado crente. Alguns deles me disseram que eles viram, na televisão comunitária, os atentados do 11 de setembro. Segundo eles, os missionários estavam presentes e disseram: 'está vendo, o fim de mundo vai acontecer, Jesus vai voltar e só quem for crente vai para o céu'. Aí muita gente se converteu. 

Hoje em dia 100% deles estão convertidos?

Não 100%, tem gente que não está, mas mesmo esses não mantêm mais sua cultura, porque a igreja virou o grande centro social. É na igreja que as pessoas se encontram, antes era nas festas.

Ainda existem waris que praticam o canibalismo funerário?

Não, o canibalismo funerário acabou no momento da pacificação, foram muito reprimidos, especialmente pelo pessoal do governo. Eles ficavam cercando a sepultura dos mortos às vezes por dois dias, armados, para que os wari não desenterrassem e comessem os mortos. Para os waris, isso era um horror completo, porque comer era uma forma de você fazer desaparecer esse corpo. Eles precisavam destruir o corpo para que a pessoa pudesse ir para o mundo dos mortos. Para os vivos, fazer desaparecer o corpo era fundamental para resolver o luto.

 

A senhora já criticou as políticas do governo Bolsonaro para os povos indígenas. Qual dessas políticas representa a maior ameaça?

A coisa mais nociva é a questão da demarcação das terras. A terra dos índios é ponto chave de sobrevivência, se eles não demarcarem ou ameaçarem as áreas demarcadas, ainda que seja impossível, porque constitucionalmente elas estão protegidas, isso é um horror, porque os índios dependem das reservas íntegras e protegidas. Esse vai e volta do governo de mudar a Funai para o ministério da Agricultura está fazendo com que muitas pessoas em áreas próximas a reservas indígenas se sintam autorizadas a ameaçar os índios. 

E a afirmação de que os índios, na verdade, querem cultivar a terra deles e fazer com a terra o que quiserem...

Não tem nada de verdadeiro nisso. Eles fazem um cultivo de subsistência suficiente para a segurança alimentar deles. Agora, claro que tem alguns casos que às vezes o governo se alia a algumas lideranças indígenas que querem fazer negócio com plantadores de soja, mas são pessoas deslocadas dos movimentos indígenas, não têm voz para falar por uma comunidade, pessoas com motivação política.

A senhora é professora de Antropologia no Museu Nacional. Como está a reconstrução do museu?

Agora estão fazendo agora um trabalho de arqueologia, escavando o chão do museu para tentar recuperar alguns objetos que se salvaram do incêndio. Mas só liberaram uma parcela mínima do dinheiro prometido, não é suficiente. Estamos lançando uma campanha de crowdfunding para reconstruir a biblioteca Francisca Keller, que era a maior biblioteca de Antropologia da América Latina e foi totalmente destruída, com 27 mil volumes queimados. Essa é a base do nosso trabalho, é como se fosse nosso laboratório, é onde os alunos podem pesquisar. A gente não pode contar com dinheiro público, e se não reconstruirmos a biblioteca, não tem como de fato preparar os alunos.

Como está a situação dos bolsistas?

Eu já tive 10 alunos bolsistas, agora tenho dois. Eles não conseguem se dedicar inteiramente, porque não têm recursos. Alguns vêm de outros estados e não têm como pagar suas contas sem a bolsa. Eu tenho uma aluna que trabalha à noite de garçonete em restaurante, por exemplo. A consequência é que isso diminui o nível de dedicação e certamente diminui a qualidade.


Aparecida Vilaça é antropóloga, autora de 'Paletó e Eu - Memórias de meu pai indígena' e participante da Mesa 2 - Bendegó, no dia 11/07 às 10h30, na Flip 2019.

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