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É possível sentir cheiro dos Bolsonaros no ar do Brasil, diz artista portuguesa

Grada Kilomba reflete sobre as feridas abertas do colonialismo em mostra na Pinacoteca e livro que lançará na Flip

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São Paulo

Numa sala da Pinacoteca do Estado, ela espera a chegada de terra. É com terra, café, açúcar, cacau e velas que a artista Grada Kilomba monta “Table of Goods”, instalação-oferenda com que homenageia os prazeres, mas lembra também os produtos âncora da escravização africana.

Aos 51 anos, a psicóloga, pensadora e artista descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses radicada em Berlim é uma das grandes vozes do movimento feminista negro atual. No Brasil por alguns dias, ela abre agora a exposição “Desobediências Poéticas” e participa da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, onde lança “Memórias da Plantação”, que sai no país pela editora Cobogó.

“Sabes o que eu acho? A história colonial nunca foi tratada devidamente. É uma ferida de 500 anos muito profunda, com uma violência e brutalidade que nós próprios ainda não nos apercebemos. Ao mesmo tempo é vista como uma história que já passou e que, portanto, não precisa ser falada. Acho que é aí que habita o grande problema”, diz Kilomba, durante a montagem de sua exposição.

O extrativismo ambiental, a desumanização e o controle aguerrido de fronteiras são para ela ecos dessa história inflamados no presente. É justamente para colocar o dedo nas feridas, ou “perturbar esse ‘white 
cube’”, que seus vídeos e instalações ocupam quatro salas do museu paulistano.

“A Pinacoteca tem uma história colonial brutal, como todas as instituições. Eu sei que uma parte da população não entra, tem medo de entrar aqui, e acho fascinante entrar como mulher negra e ocupar o espaço. É possível trazer para dentro do museu elementos poéticos que geralmente não estão lá e que perturbam.”

Trabalhando na confluência entre dança e encenação, os vídeos de Kilomba procuram desconstruir narrativas tradicionais, como o mito de Narciso, para remontar esses enredos sobre novas bases, usando atores e bailarinos negros. 

Teoria e prática, ali, são inseparáveis, assim como trabalho intelectual, emocional e espiritual. É a potência desse encontro, quiçá, que tem seduzido instituições de arte e curadores mundo afora. Suas obras foram exibidas na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, na Documenta 14, em Kassel, na Alemanha, em 2017, e na 10ª Bienal de Berlim, no ano passado.

Enquanto vídeos e instalações refletem sua pesquisa atual, o livro “Plantation Memories”, só agora traduzido para o português, remonta a 2008, quando ela se mudou de Lisboa para fazer o doutorado na Freie Universität, em Berlim. Foi ela, aliás, a primeira da família a sair do subúrbio para estudar.

Escrita em inglês, a tese parte de entrevistas com mulheres afro-alemãs alicerçadas por conceitos centrais da psicanálise —negação, culpa, vergonha, reconhecimento, reparação— para tratar de um cotidiano marcado pela violência implícita ou explicita sobre a 
subjetividade negra.

“A branquitude é o ponto de vista suspostamente neutro, a partir do qual os outros diferem”, escreve, numa tradição teórica de desmonte de estruturas sociais e do vocabulário que tem em Audre Lorde, Angela Davis e Frantz Fanon alguns de seus expoentes. 

Dessa forma, ela argumenta, em vez de fazer a clássica pergunta moral “eu sou racista?” e esperar uma 
resposta confortável, o sujeito branco deveria se perguntar como pode desmantelar o seu próprio racismo.

É esse processo de responsabilização, segundo ela, que está mais avançado na Alemanha do que no Brasil, ainda preso na negação ou mesmo na exaltação da história colonial.

“Tu sentes os Bolsonaros, tu cheiras no ar. Incomoda muito quando tu entras num prédio e tem a porta de serviço e a da frente. Não é possível, isso é proibido! Não pode haver uma hierarquização de pessoas no espaço arquitetônico. A extrema direita está a voltar, porque sempre esteve lá, porque nunca foi embora. Quando eu mostro meu trabalho no Brasil e quando mostro na África do Sul é idêntico, porque são países com uma urgência democrática.”

O impacto do trabalho, portanto, é para ser sentido na pele. Ao montar uma exposição no Museu de Arte e Tecnologia, em Lisboa, Kilomba conta que fez amizade com um homem idoso de Angola que trabalhava na portaria.

“Viu-me entrar e no terceiro dia perguntou: ‘Mas o que tu vens fazer aqui todos os dias?’. E eu disse: ‘Eu sou a artista que vai fazer a nova exposição individual’. Ele ficou paralisado e falou: ‘Eu nunca entrei lá dentro. Eu só entro para me vestir.’ Convidei-o para abertura, ele veio com a esposa e foi a primeira vez que ele entrou no próprio local de trabalho sem ser da porta para o vestiário. Depois me disse que havia se emocionado com o trabalho, que voltaria para trazer os filhos, a sobrinha.”

É, portanto, a triangulação entre que histórias são contadas, como são contadas e quem as conta que está no centro das preocupações da artista. Não à toa, seu nome costuma ser lembrado como referência por Djamila Ribeiro, teórica brasileira autora de “O que É Lugar de Fala?”. As duas se encontrarão no museu para uma conversa aberta ao público.

“Quando escrevi o livro, eu era muito jovem e estava à procura de formular as minhas questões e buscar respostas que não encontrava. Agora, faço aquilo que eu gosto e que eu quero. Já não sou uma menina que está à procura, mas talvez uma mulher que performa novas perguntas.” Fazer o que quer, ela diz, é um privilégio, mas é também uma conquista.


o que ver, ler e ouvir

Grada Kilomba: Desobediências Poéticas
Pinacoteca - pça. da Luz, 2, tel. (11) 3324-1000. Qua. a seg.: 10h às 17h30. Até 30/9. Neste sáb. (6), ela realiza um debate no museu com Djamila Ribeiro, colunista da Folha

Flip
Na programação oficial, autora será entrevistada por Kalaf Epalanga e Lilia Moritz Schwarcz no dia 12 de julho, às 19h. Ela participa de mesa na Casa IMS, da programação paralela, no dia 11, às 19h

Memórias da Plantação
Autora: Grada Kilomba. Ed.: Cobogó. R$ 48 (244 págs.)

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