Descrição de chapéu

Em tempos de bienais alienadas, Whitney se apega ao dias de hoje

Mostra em Nova York dialoga com preconceito, imigrantes e contradições do museu que a abriga

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Obra de Ragen Moss no Whitney
Obra de Ragen Moss no Whitney - Vincent Tullo/The New York Times
Nova York

Uma procissão que lembra um cortejo fúnebre de personagens históricos fracassados, com figuras grotescas e disformes tentando se mover enquanto os pés seguem atados ao chão com massa de cimento ou chiclete, poderia ser o abre-alas desta 79ª Bienal do Whitney, em Nova York. 

Poucos trabalhos traduzem tão bem a ópera tragicômica do atual momento político americano, um assunto em destaque na mostra que desde 1932 traz um panorama da produção local mais recente. 

Mas a obra de Nicole Eisenman encerra a exposição no terraço do museu como um bloco de Quarta-Feira de Cinzas, com o escracho e o sarcasmo típicos do Carnaval.

O destaque é uma figura flatulenta em posição de quatro e com meias nas cores da bandeira que de tempos em tempos emite um gás inodoro, provocando uma nuvem de fumaça e risos imediatos. 

O tema incomoda menos pela referência escatológica do que pela associação ao escândalo sobre Warren Kanders, vice-presidente do conselho do Whitney e dono de uma empresa responsável pela produção de embalagens de gás lacrimogênio, a Safariland. Além de uma campanha pedindo sua renúncia assinada por mais de 120 nomes, muitos funcionários do próprio museu e artistas da bienal, o caso ganhou força também com os protestos do coletivo Decolonize This Place. 

Na abertura para o público, em maio, eles ocuparam a entrada e o térreo e distribuíram panfletos idênticos aos da instituição, mas no lugar do programa estava um resumo das pautas do grupo que têm os museus como alvo. 

Pedem a diversidade e a inclusão de minorias no conselho (hoje com 92% de brancos); transparência nas atividades dos membros, revelando os demais nomes envolvidos com o setor militar; o fim da filantropia tóxica e artwashing —empresários que se associam ao meio artístico para limpar a reputação de seus negócios nada bem vistos. 

Se por um lado há uma frustração de que nada disso foi eficiente (Kanders não renunciou), ao menos a polêmica é contada de forma crítica pelo Forensic Architecture.

Um dos projetos mais interessantes atualmente, combinando arte e ativismo com um alto grau de pesquisa científica, o grupo inglês criou uma réplica digital das embalagens de gás fabricadas pela Safariland como forma de investigar onde foram utilizadas, já que esses dados não são fornecidos pela empresa. 

O vídeo de 11 minutos revela que o armamento aparece em imagens tanto de conflitos contra imigrantes na fronteira entre San Diego e Tijuana, em novembro de 2018, como é exportado para ser usado em Israel contra palestinos.

Em uma edição da mostra que tanto reforça a inclusão de minorias —mais da metade dos 75 artistas são negros, latinos ou de origem indígena e há mais mulheres do que homens— é contraditório ver que a origem do dinheiro do museu tem relação com ataques a esses mesmos grupos. 

O vídeo apresentado pelo Forensic Architecture serve para diminuir o incômodo utilizando a própria instituição como crítica. Uma frase de Kanders abre o trabalho: “Enquanto minha empresa e o museu tiverem missões distintas, ambos são importantes para a sociedade”. Mas revela-se cada vez menos verdadeira numa época em que as instituições assumem posições sobre fatos políticos.

Se a Bienal de 2017 ficou lembrada pela polêmica sobre Dana Schutz, artista branca acusada de espetacularizar a morte negra em uma pintura sobre um menino de 14 anos mutilado no caixão, corre-se o mesmo risco de que o vídeo do Forensic termine por ofuscar o resto da mostra. 

Mas há outros pontos altos na seleção feita pelas curadoras Rujeko Hockley e Jane Panetta. É difícil não se comover com os desenhos em carvão da artista surda Christine Sun Kim, revelando em gráficos o grau de sua raiva em distintas situações de discriminação. O mundo da arte aparece no primeiro —curadores que acham justo dividir sua remuneração com intérpretes, por exemplo—, revelando como tal tipo de inclusão é tão ignorada por esse meio como em qualquer outro.

Discriminação que aparece também no ótimo trabalho de Alexandra Bell com o arquivo de jornais sobre a cobertura do estupro de uma mulher no Central Park, em 1989, quando adolescentes negros e latinos foram acusados injustamente pelo crime. O caso motivou a série “Olhos que Condenam”

Um desses arquivos é uma carta de Donald Trump no Daily News pedindo a volta da pena de morte em Nova York após o episódio. Em outras matérias, a artista destaca a linguagem de segregação —caso das referências aos jovens como um “bando de lobos” e “selvagens.”

Um discurso de dominação também ecoa na frase “People Like Us”, de Jeffrey Gibson, bordada em tecido no estandarte preso ao teto. O artista se inspira em um ritual de dança de índios americanos como resistência ao colonialismo, evocando ao mesmo tempo a bandeira LGBT. 

O porto-riquenho Daniel Lind-Ramos é um dos jovens artistas que se destaca com trabalhos feitos com tecido e materiais aproveitados e formas inacabadas, poucos realmente originais. Sua escultura “Maria-Mariatanto” se refere tanto à imagem da virgem católica quanto ao furacão que levou esse nome e devastou os Estados Unidos em 2017. 

Pode-se especular também uma associação com o cangaço por causa do lampião que aparece na peça e uma estrutura similar ao chapéu do personagem histórico brasileiro. A produção do artista dialoga ainda com um núcleo considerável de obras sobre temas espirituais, muitas relacionados a religiões africanas.

Apesar de reunir ótimos trabalhos, parece haver uma falta de comunicação entre os diferentes núcleos, tornando a visita um pouco monótona —mesmo que, individualmente, o diálogo entre as obras seja bom.

Mas, em tempos de bienais pouco conectadas com a realidade, como foi o caso da última edição brasileira, há bons motivos para se celebrar uma mostra tão ancorada no presente como essa.

79ª Bienal do Whitney

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