Descrição de chapéu Flip

'Esquerda idealizou Canudos ao idolatrar o monarquista Conselheiro', diz jornalista

Na Casa Folha, mesa discute a linguagem de 'Os Sertões' de Euclides da Cunha

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Paraty (RJ)

A esquerda idealizou a Guerra de Canudos e, "talvez por falta de modelos", elevou Antonio Conselheiro, líder do grupo que resistiu ao Exército, "a um papel que talvez nunca tenha tido". 

Com essa provocação, o jornalista Mario Cesar Carvalho apimentou nesta sexta (12) "A Linguagem de ‘Os Sertões’”, mesa na Casa Folha, parte da programação da Flip, sobre a narrativa de Euclides da Cunha sobre o conflito. Ele debateu com escritor e colunista da Folha Sérgio Rodrigues.

Mesa "A Linguagem de 'Os Sertões'" com Mario Cesar Carvalho e SŽergio Rodrigues, e mediação de Mauricio Meireles, na Casa Folha
Mesa "A Linguagem de "Os Sertões" com Mario Cesar Carvalho e SéŽrgio Rodrigues, e mediação de Mauricio Meireles, na Casa Folha - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Não custa lembrar que Conselheiro era um monarquista ressentido com a República, que tirara das mãos da Igreja Católica a função de emitir registros de nascimento e morte. 

"Me parece estranho, uma loucura, que a esquerda adote monarquista como modelo", disse. Mais surpreendente que isso, só um folheto que viu dia desses de um grupo autointitulado "monarquistas esquerdistas". 

Nesse momento, Rodrigues interrompe e brinca que é a Ursal daquele tempo, referência à sigla de uma suposta União das Repúblicas Socialistas da América Latina, que alas direitistas dizem ser uma conspiração progressista no continente. 

Claro que Canudos tinha um forte viés contestatório, afirmou Carvalho, que organizou o livro inacabado de Roberto Ventura, um dos maiores especialistas na obra de Euclides, o homenageado nesta edição da festa literária. Ventura, autor de “A Terra, o Homem, a Luta —Um Guia para a Leitura de ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha”, da Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, morreu aos 45 anos num acidente de carro quando retornava da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, no interior paulista.

"Canudos começa a incomodar o Estado sobretudo por duas razões: contestam os aparelhos republicanos dos cartórios e começam a não pagar impostos." Há ainda de se considerar que a querela "atrai tanto a população que os fazendeiros da região começam a perder a mão de obra barata que tinham". 

E o governo brasileiro, naquele começo de República e fim do século 19, recorreu a "fake news" amplamente difundidas pelos jornais da época para convencer a população de que famílias europeias monarquistas, por exemplo, financiavam os rebeldes.

Um dos objetivos da conversa era fazer as pessoas perderem o medo de Euclides da Cunha, disse o mediador da mesa, o jornalista da Folha Mauricio Meireles.

Rodrigues contou que só foi "ler de verdade mesmo" a obra-prima do escritor nos anos 1980. 

"Nossa percepção de hoje acaba inevitavelmente comprometida pela consciência de que [muito dali] não é uma ciência sólida", afirmou, lembrando que Euclides se valeu de jargões científicos ultrapassados, inclusive teorias racistas de seu tempo. 

Carvalho deu um conselho: o "melhor jeito de lidar com teorias ultrapassadas é entender o contexto histórico", ou você "joga tudo no lixo", a obra de Euclides e de vários colegas. Sexismo, racismo ou preconceitos de qualquer tipo, isso vai ter de sobra no período.

"Seria uma pobreza horrível excluir essas pessoas dos cânones por terem crenças que eram comuns à época", disse.

Rodrigues criticou certa visão utilitarista de quem talvez se pergunte: "Para que dedicar tanto esforço intelectual nos jargões se nem é correto mais?". Mas "a arte é inútil, e é bom que seja assim", disse.

Para o colunista da Folha, "o livro vai te premiando pelo esforço". Começa com uma linguagem pedregosa, mas no fim é bem mais acessível, de uma clareza que lhe remete a Graciliano Ramos e Fernando Sabino. "Ao fim da travessia, você tem um Éden, uma história saborosa, que é a luta [dos revoltados contra os militares]." 

Outros escritores fizeram parecido: um início prolixo demais. Caso de Umberto Eco em seu "O Nome da Rosa": "Esse cara tá se exibindo, não está colocando o conhecimento a serviço do leitor". Euclides lhe passa a mesmíssima impressão, disse Rodrigues.

Carvalho, que foi amigo do pesquisador Roberto Ventura, disse que ele era fascinado com uma imagem de Euclides, que esteve em Canudos primeiramente para cobrir o conflito como jornalista, ao lado do Exército, e anos depois lançou o livro que denunciou as barbaridades cometidas ali: "No primeiro dia, ele sai pra andar com outros jornalistas vestindo terno branco de seda, coisa mais belle époque, Veneza, e uma bota de verniz". 

Ventura queria mostrar que "Euclides era sempre o inadequado", sempre "meio sobrando", disse. 

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