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Filme sobre tratamento religioso de vício em drogas tem paralelo no Brasil

'A Prece', de Cédric Kahn, mostra situação semelhante à das comunidades terapêuticas

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São Paulo

Em meio a uma paisagem idílica no interior da França, jovens viciados em drogas são enviados a um centro de tratamento para se desintoxicarem. Lá, em abstinência total, trocam suas roupas pela moda cristã (saias longas para as moças, camisas para os rapazes), passam os dias cortando lenha e rezam juntos no tempo livre. 

Com diferença no nível de precariedade, o cotidiano mostrado no filme francês “A Prece”, dirigido por Cédric Kahn, tem um paralelo no modelo de comunidades terapêuticas adotado no Brasil. Geridos, normalmente, por ex-usuários sem formação médica, esses centros usam com frequência a religião como forma de superar a dependência. Para a psicanalista Maria de Lurdes Zemel, que trabalha há mais de 40 anos com dependentes químicos, esse tipo de tratamento é um retrocesso na saúde pública.

Cena do filme 'A Prece', de Cédric Kahn
Cena do filme 'A Prece', de Cédric Kahn - Divulgação

“Ele está ligado à internação compulsória e à ideia de que o usuário é incapaz”, disse. Priorizadas oficialmente pelo governo sobre os Caps (Centros de Atendimento Psicossocial), as comunidades terapêuticas se sustentam com repasses estatais e se baseiam na combinação de trabalho, oração e abstinência. “Não podemos fazer esse desvio de dinheiro público e exigir que a população de baixa renda acredite em Deus na marra.”

A declaração foi dada em debate após a sessão do filme na terça-feira (16). O evento foi promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pelo Museu da Imagem e do Som com apoio da Folha

Zemel ressaltou as denúncias de violência e maus-tratos feitas por pacientes das comunidades terapêuticas. “Pode ter essa oferta de tratamento, mas não só essa. Acho temerário o governo oferecer essa como a única oferta. Não podemos aceitar isso.”

No centro apresentado no filme, nem todos os pacientes conseguem se tratar. Alguns contrabandeiam heroína para dentro da comunidade e seguem usando; outros, mesmo sóbrios há anos, permanecem lá, com medo de voltarem a usar drogas na retomada da rotina em casa. Para a psicanalista, muitas comunidades terapêuticas podem criar uma situação de dependência semelhante. 

“As pessoas estão recuperadas enquanto estão lá dentro, mas não conseguem manter a vida fora da instituição”, afirmou ela. “Tem uma substituição da droga por esse sistema. É muito sério.”

Zemel também apontou que o consumo de drogas, hoje, se tornou individualizado e solitário, ao contrário do que acontecia em meados do século passado. Os usuários abandonaram rituais protetores, como fumar maconha em roda ou dividir uma seringa, tanto pela falta de tempo como pela ameaça do HIV. Como Deus, disse ela, as drogas também são um encontro solitário, prometem redenção e exigem a renúncia de todo o resto.
 
O protagonista do filme, Thomas, vai de um extremo ao outro. Após passar pelo tratamento e sobreviver a um acidente em uma montanha gélida, ele troca a dependência em heroína pela batina de seminarista. 

Para o jornalista da Folha Naief Haddad, que participou do debate, a posição do filme é complexa e, por vezes, ambígua. “Não há um endosso do diretor em relação a esse tipo de tratamento, mas ele também não acha que aquilo é tudo condenável”, disse. “Esse meses na clínica dão a condição para que ele tome a vida nas próprias mãos. A gente não está em um terreno polarizado.”

Haddad ressaltou o uso de metáforas visuais no filme: Thomas se aproxima da morte em uma montanha, o ponto de conexão com o céu, de transcendência e elevação espiritual. No entanto, também se apaixona por uma arqueóloga que vive escavando a terra, imagem que remete ao plano do real, do concreto e do sensual.

Para o jornalista, a religião usada nesses tratamentos pode ser veneno ou remédio, dependendo da dosagem. À parte disso, afirmou, o ritmo metódico das atividades —nos quais os rituais repetitivos servem para sublimar o desejo escapista por uma substância— pode ajudar na recuperação dos dependentes.

Mesmo assim, o uso da religião para "curar" dependentes químicos não é o problema mais grave das opções públicas de tratamento no Brasil. De 40 anos para cá, pontuou Maria de Lurdes Zemel, algo essencial não mudou.

“No hospital psiquiátrico onde eu trabalhava nos anos 1970, eles [dependentes] eram marginalizados. Os psicóticos eram doentes, os neuróticos eram doentes, e eles eram sem-vergonhas”, contou. “Hoje eu tenho 70 anos e continuo enfrentando esse mesmo problema. Eles ainda são vistos como vagabundos.”
  

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