Descrição de chapéu Flip

Fogos contra Greenwald atrapalham mesa da aplaudida Grada Kilomba

O Brasil separa os que entram pela frente e os que entram pelos fundos, disse a multiartista

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Paraty (RJ)

Com o som baixo, que lutava contra os barulhos de fogos que vinham do outro lado do estreito rio, a multiartista portuguesa Grada Kilomba conversou com o angolano Kalaf Epalanga e com a antropóloga brasileira Lilia Schwarcz e foi aplaudida efusivamente por diversas vezes.

Os fogos vinham do protesto contra a presença do jornalista Glenn Greenwald na programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty.

Um dos momentos de aplausos mais barulhentos que os fogos foi quando Kilomba explicou por que se recusou a mostrar no telão de sua conferência da noite de sexta (12), após sugestão de Schwarcz, uma imagem da máscara de flandres. O instrumento era usado como castigo nos escravizados, tampando suas bocas, para que não comessem nem bebessem.

Segundo ela, observada com atenção na primeira fileira por Conceição Evaristo, em suas conferências, falas e exposições não são exibidas “imagens em que negros africanos escravizados são apresentados em público com fetichismo”. “E eu digo escravizado porque não há escravo, há pessoa escravizada, há um sistema que escraviza.” Mais palmas. 

Ela propõe então que se reflita sobre a exibição de imagens que reproduzem a violência. “Essas imagens não devem se apresentar em público, devem estar em espaços de reflexão, espaços muito íntimos.”

Kilomba, que tem raízes em Angola e São Tomé e mora em Berlim, falou sobre a opção de escrever seu “Memórias da Plantação”, reunião de histórias de racismo que mistura memória e psicanálise, em inglês. Segundo ela, além de, assim, o livro atingir mais pessoas, o inglês já possui uma terminologia para tratar da descolonização, pois já foi usada por nomes como Malcolm X, Angela Davis, Martin Luther King.

Ela contou sobre as dificuldades de vocabulário que enfrentou quando da tradução do volume para o português, em Portugal e no Brasil. “A língua portuguesa, como outras europeias, transporta o poder colonial. Muitas das terminologias carregam a marca do gênero masculino. Ao traduzir, uma frase escrita por uma mulher negra se transforma em uma frase de um homem branco”, disse.

Segundo ela, criou-se a ideia da beleza da língua portuguesa para se esquecer o fato de que a colonização apagou centenas de outras línguas. “Nós romantizamos o português e não lembramos quantas outras foram erradicadas.”

Ela, que é pesquisadora, professora, artista visual e escritora, diz que seu trabalho tem um conceito de conhecimento circular, que apanha saberes de diversos lugares, diferentemente da separação hierárquica horizontal do conhecimento, que ela diz ser colonial e patriarcal.

Sua participação na Flip foi marcada por momentos de teoria complexos, elaborações sobre as ligações entre a ideia de ciência e o projeto colonial, explanação sobre corpos a serem explorados em Kant e Hegel e a desconstrução do complexo de Édipo sexual da psicanálise para se expor sua violência, como fez Frantz Fanon. Mas a plateia que encheu o auditório da Matriz ficou ligada o tempo todo.

Segundo ela, vivemos uma crise da humanidade, na qual “corpos são desumanizados e colocados para fora da vida humana”.

Ela descreve o Brasil como um país fraturado, onde os corpos marginalizados são humilhados. Ela fala sobre como isso aparece na arquitetura. “Parece impossível viver numa democracia que constrói espaços que separam corpos entre os que entram pela frente e os que entram pelos fundos.” Grada já havia comentado o absurdo das entradas de serviço no Brasil em entrevista recente à Folha.

Antes de o público lamentar com um grande “aaaa” o fim da mesa, Kilomba falou sobre como os cumprimentos que negros direcionam uns aos outros na Europa, silencioso, com apenas um abaixar de cabeça, é uma maneira de “alinhavar de novo nossa história”, uma história de separação, de fragmentação por uma colonização que separou os negros de suas famílias, de suas terras, de suas línguas.

“O racismo é chocante porque é desumano, porque separa a pessoa da nação. O trauma colonial é reassinado com o racismo”, encerrou.

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