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João Gilberto deslocou eixo da música popular brasileira para girar em torno de seu projeto

Músico, que procurou o simples, e não a simplificação, conseguiu chegar a objetivo de som coeso e fluente

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Rio de Janeiro

Em 16 de agosto de 1959, a Revista do Rádio publicou reportagem em que João Gilberto falava sobre ter nascido em Juazeiro, no semiárido baiano, no dia 10 de junho de 1931.

“É a única data que eu guardo, porque para mim esse negócio de datas não tem muita importância. A vida é uma estrada, cheia de etapas. A gente começa a caminhar, para de vez em quando, de vez em quando volta para reencontrar o caminho certo – e um dia chega ao fim.”

O fim chegou para João Gilberto Pereira de Oliveira neste sábado (6)

Mas ele já concluíra há bastante tempo o caminho que escolheu como o certo. A etapa mais importante, a despeito de seu desprezo por datas, aconteceu em 10 de julho de 1958, o dia em que gravou “Chega de Saudade”.

João Gilberto durante apresentação, em 2008, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em celebração aos 50 anos da Bossa Nova
João Gilberto durante apresentação, em 2008, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em celebração aos 50 anos da Bossa Nova - Ari Versiani - 24.ago.08/AFP

A partir daquele momento, João deslocou o eixo da música popular brasileira. Ela passou a girar em torno do seu projeto.

Sim, projeto, porque ele sabia exatamente o que queria fazer. É o que mostram, por exemplo, as reportagens compiladas pela escritora e pesquisadora Edinha Diniz e que estão presentes no livro “João Gilberto”, de 2012.

O artista interditou na Justiça o volume organizado por Walter Garcia alegando que deveria tê-lo autorizado. 

A essência do projeto ele explicou em poucas frases à revista Radiolândia, na edição de 21 de novembro de 1959.

“Apenas procuro cantar sem prejudicar o sentido poético e musical das composições. É assim como tirar os excessos, seguir o curso natural das coisas, dar as notas de um jeito tal que não prejudique o sentido da poesia, frisar aquelas palavras que têm a força poética. (...) Procuro que a voz saia idêntica à nota musical, brandamente, com naturalidade, sem esforço artificial.”

João procurou o simples, não a simplificação. Falar em “batida do João” pode reduzir a complexidade de seu projeto a um artifício da mão direita. Ele dizia buscar “o som”: voz, violão, melodia, ritmo, harmonia, tudo coeso e fluente. Conseguiu.

Essa história começa em Juazeiro, na infância passada numa casa à beira do rio São Francisco. 

“Gostava de ficar horas e horas à beira do rio, ouvindo o coaxar dos sapos e vendo a luz, a claridade, os reflexos do sol na água. Tentava compreender aquilo tudo. Consegui sentir —compreender não compreendi. Mas aquilo ficou em mim e ainda hoje carrego comigo um bocado de todo aquele alumbramento”, disse à Revista do Rádio em 1959.

Depois de quatro anos (1942 a 1946) estudando em Aracaju, retornou a Juazeiro. Ganhou do pai, Joviniano Domingos de Oliveira, um violão. Formou o conjunto Enamorados do Ritmo. 

Transferido para Salvador em 1947 para continuar os estudos, largou tudo pela música. Em 1949 já era cantor contratado da Rádio Sociedade da Bahia. No ano seguinte, chegou ao Rio para integrar os Garotos da Lua.

Tornaram-se objeto de culto as seis gravações realizadas por João em sua primeira passagem pelo Rio: quatro com os Garotos da Lua, em 1951, e duas solo, em 1952.

Ouvir sua voz volumosa, à moda dos principais cantores do rádio, é fascinante. Mas, dificilmente, ele se destacaria seguindo esse caminho. 

Após outras experiências no Rio (em 1953, com os Quitandinha Serenaders) e em São Paulo (em 1954, com os Anjos do Inferno), viveu dois anos de recolhimento que se revelaram fundamentais. 

Enfrentou a tristeza em Juazeiro ao lado da família, a começar pela mãe, Martinha do Prado Pereira de Oliveira.

E também em Diamantina (MG) com sua irmã Maria, a Dadainha. Foi na casa dela que, debruçado sobre o violão por incontáveis horas, desenvolveu a sua estética. 

Sentiu-se forte para voltar ao Rio em 1957. Encontrou na cidade um par perfeito: Antonio Carlos Jobim, que se tornaria arranjador de muitas de suas gravações e autor de 30 canções de seu repertório, entre elas “Chega de Saudade”, letra de Vinicius de Moraes. 

Encontrou ainda uma turma de cantores, compositores e instrumentistas que não se interessava mais pelo samba-canção, trilha sonora de boates invariavelmente noturnas.

E encontrou a capital de um país solar, campeão do mundo de futebol em 1958 e que, no clima otimista do governo Juscelino Kubitschek, confiava que o futuro estava chegando, enfim. 

Dessa conjunção de fatores nasceu a bossa nova, rótulo a que João não deu muita importância, mas que acolheu.

Graças a Tom Jobim, ele tocou violão em duas faixas (“Chega de Saudade” e “Outra Vez”) do disco “Canção de Amor Demais”, lançado em julho de 1958 e no qual Elizeth Cardoso interpretava músicas de Tom e Vinicius. 

Logo em agosto saiu o disco em 78 rotações com “Chega de Saudade” de um lado e “Bim Bom” —um samba-manifesto que ele compôs— do outro.

Nos anos posteriores, veio a trilogia de álbuns que detalharam a estética de João: “Chega de Saudade” (1959), “O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960) e “João Gilberto” (1961).

O novo som se espalhou pelo mundo, atraindo, sobretudo, os jazzmen. O saxofonista norte-americano Stan Getz foi com afinco à fonte e conseguiu até gravar um disco com João —e arranjos de Tom. 

“Getz/Gilberto” foi feito em 1963, mas ficou um ano engavetado na gravadora Verve, que não apostava em seu potencial comercial.

Ao chegar às lojas, atingiu o segundo lugar nas paradas de sucesso (só atrás dos Beatles) e partiu para ganhar em 1965 quatro prêmios Grammy e se tornar um dos títulos mais importantes da história da música popular.

Puxando o sucesso, “Garota de Ipanema” cantada por João e a sua primeira mulher, Astrud Gilberto.

Depois desses quatro primeiros, João ainda lançaria outros 13. Número pequeno para um período de 38 anos, o que traduz seu grau de exigência.

Em “Amoroso” (1977), mostrou que qualquer música cabia no seu estilo: cantou também em inglês, espanhol e italiano, com arranjos orquestrais de Claus Ogerman.

A internacionalização não mudou seu pensamento: o que fazia era samba. Boa parte de seu repertório consistia em sambas que ouvira no rádio —de Ary Barroso, Caymmi, Wilson Batista e outros. 

João terminou recluso, de vida sombria, bem distante da claridade da infância em Juazeiro. De certa forma, viveu dentro do seu violão, do seu som. E este não tem data para chegar ao fim.

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