“Onde será que isso começa?”, pergunta o primeiro verso de “O Nome da Cidade”, música de Caetano Veloso, composta para o espetáculo “A Hora da Estrela”.
“Onde será que isso termina?”, emendou o arquiteto Guilherme Wisnik, após Adriana Calcanhotto tocar a música na abertura da mesa em que falaram os dois, juntos do curador português Nuno Grande, na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) nesta quinta-feira (11).
“De JK a JB”, resumiu Nuno Grande. A mesa tratou das relações entre literatura, música, urbanismo e arquitetura, tomando como fio narrativo a história de Brasília, de Juscelino Kubitschek a Jair Bolsonaro —cuja foto, exibida ao final, ensejou vaias e gritos por “Lula livre”.
Sem cobrar ingresso, a mesa Uauá (nome da cidade no interior da Bahia onde o Exército brasileiro sofreu a primeira derrota contra os revoltosos de Canudos) lotou o auditório da praça da Matriz.
O público cantou junto as músicas que Adriana Calcanhotto usou para pontuar as falas dos colegas, ilustrando os momentos arquitetônicos, como “Ela é carioca”, “Sinfonia da Alvorada” e “A Mulher do Pau Brasil”.
A mesa recapitulou a exposição “Infinito vão: 90 anos de arquitetura brasileira”, em exibição na Casa de Arquitectura de Matosinhos, em Portugal, desde o ano passado. Wisnik, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi curador da mostra, que teve abertura da cantora.
Infinito vão remete à música “Drão”, de Gilberto Gil (“O verdadeiro amor é vão/ Estende-se infinito/ Imenso monolito/ Nossa arquitetura”). Os vãos, marcas arquitetônicas no modernismo brasileiro, foram ressaltados durante todas as falas. O espaço livre erguido pelos pilotis do edifício Gustavo Capanema, no Rio, onde funcionava o Ministério da Educação e Cultura; a amplitude do Palácio do Itamaraty, em Brasília; e, nas palavras dos palestrantes, o vão máximo da arquitetura brasileira, o do Masp (Museu de Arte de São Paulo).
“Um tema que seria revisitado muitas vezes pelos nossos edifícios, com a ambição de sobrevoar, de se lançar no vazio”, afirma Wisnik.
“O vão como a conquista dessa liberdade, o contrário da arquitetura portuguesa, que se define como uma arquitetura chã, uma arquitetura atávica, presa ao chão, a arquitetura brasileira ganhou essa coisa utópica, esse desejo de salto, de sobrevoo.”
O brasileiro lançou uma provocação ao passar a palavra a Nuno Grande. Recitou “Erro de Português”, de Oswald de Andrade: “Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português”.
O arquiteto português não deixou em branco. “Os brasileiros pensam que inventaram o português e que inventaram o modernismo. Não. Os brasileiros comeram o português e regurgitaram o português brasileiro. Comeram o modernismo e regurgitaram o modernismo brasileiro”, disse, e começou uma ode à antropofagia, exaltando a contribuição tupiniquim ao movimento iniciado por Le Corbusier.
A ode ao modernismo de Brasília não aliviou para os problemas que a capital ganhou com o tempo —o grupo exibiu o filme “Brasília, Contradições de Uma Cidade Nova” (1967), que já mostrava a segregação a que os construtores da cidade foram submetidos.
“Brasília tem dias claros, mas também tem dias muito negros como esse”, afirmou Nuno Grande, ao exibir uma foto do muro construído na Esplanada dos Ministérios para separar manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment (“golpe!”, gritaram os presentes, ao ouvirem a palavra) de Dilma Rousseff.
“[O muro] é ao mesmo tempo um golpe de morte do projeto moderno”, disse Wisnik.
Antes de Calcanhotto encerrar a mesa com “Drão”, o paulista exibiu fotos do bloco carnavalesco Boi Tolo no vão do edifício Capanema, a tomada do espaço público, e de manifestantes no vão do Masp.
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