Em 1955, os jovens aspirantes a cineastas Roberto Pires e Oscar Santana ficaram impressionados com a imagem esticada na tela do Cine Guarani, em Salvador —hoje rebatizado com o nome de Glauber Rocha.
Eles assistiram ao filme americano “O Manto Sagrado”, de 1953, o primeiro em cinemascope na história.
Intrigados com a inovação, que deixa a imagem mais larga quando projetada na tela, insistiram com o operador do cinema até que ele desse a eles oito fotogramas dos negativos da película. Depois de analisarem o material, os dois colegas do curso de administração se enfurnaram no laboratório da ótica do pai de Pires para fabricarem eles mesmos lentes de cinemascope.
Foram oito meses de testes até desenvolverem um conjunto que chamaram de Igluscope —uma referência à produtora dos dois, a Iglu Filmes, que recebeu esse nome, inusitado para a calorenta Salvador, em homenagem ao bar e restaurante Frios Iglu, que frequentavam.
“Ele sempre foi um pouco aventureiro na hora de descobrir formas de fazer as coisas”, contou Oscar Santana, hoje aos 84 anos, no documentário "O Artesão de Sonhos", sobre Roberto Pires, que morreu em 2001.
Com Pires na direção, e Santana na câmera, as lentes foram responsáveis pelas filmagens de “Redenção”, um thriller sobre a solução de um assassinato, que começaram em 1956 e terminaram em 1958.
Rodado inicialmente apenas aos fins de semana, a produção só acelerou quando o produtor de cacau Élio Moreno Lima decidiu associar-se à Iglu e produzir o filme, contratando o diretor de fotografia Hélio Silva, que havia trabalhado em “Rio, 40 graus” (1955), de Nelson Pereira dos Santos.
“Redenção” revelou o ator Geraldo Del Rey, que até então era vendedor de roupas. A noite de estreia, no Cine Guarani, em 6 de março de 1959, foi um evento de gala, com o filme sendo depois exibido no circuito nacional e se tornando o primeiro filme brasileiro em cinemascope e também o primeiro longa-metragem do cinema baiano.
Depois de ser dado como perdido nos anos 1970, o filme foi restaurado em 2009, após uma cópia ter sido encontrada. “Fomos modestos, devíamos ter pensado como Glauber, que vendia bem a imagem dele”, avalia Santana.
Graças a “Redenção”, o jovem Glauber Rocha, que antes criticava a Iglu, se juntou a eles e realizou o seu primeiro longa, “Barravento”, em 1962.
“Se o cinema não existisse na Bahia, Roberto Pires o teria inventado”, escreveu Glauber depois em seu livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”.
A categoria de Roberto Pires seria vista mais tarde em filmes como “Máscara da Traição”, de 1969, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, e “Césio 137 — O Pesadelo de Goiânia”, de 1990, com Nelson Xavier e Joana Fomm.
Pires morreu aos 66 anos, vítima de um câncer desenvolvido durante as filmagens de sua última produção.
“Ele teve contato com lixo radioativo. Um ano depois, apareceu um caroço no pescoço”, diz o diretor Petrus Pires, filho do cineasta. “A Associação das Vítimas do Césio-137 reconhece ele como uma das vítimas indiretas.”
Apesar do pioneirismo, o cineasta jamais voltou a filmar em Igluscope, mas as lentes estão até hoje com Oscar Santana. "Uma vez, Roberto queria doar pra um colecionador. Mas eu disse que não, e guardo".
Seis décadas depois de “Redenção”, Santana agora se dedica a pôr de pé um pequeno museu cinematográfico.
“Foi uma casualidade abençoada a gente se encontrar. Roberto era um gênio da artesania cinematográfica, ele tinha paixão pela forma de fazer cinema, enquanto eu tinha pelo conteúdo. Tenho saudades daquele tempo. Perdemos muito de humanidade, honestidade e sinceridade dos anos 1950 pra cá”, acredita.
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