Descrição de chapéu The New York Times

Séries que mostram aborto sem dramas estão mais frequentes

Incidência foi constatada por autora de estudo nos EUA; roteiristas dizem estar retratando o que conhecem

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Em “Shrill”, Abby, uma mulher solteira da geração milênio interpretada por Aidy Bryant, professa se sentir “poderosa” depois de pôr fim à sua gravidez indesejada.
A atriz Aidy Bryant, em 'Shrill', professa se sentir 'poderosa' após interromper gravidez indesejada - Divulgação
Cara Buckley

Em uma recente conferência nos arredores de Los Angeles, uma advogada que defende os direitos das mulheres discursou perante um grupo seleto de pesos pesados de Hollywood.

Dada a ameaça ao direito de escolha das mulheres, a advogada, Fatima Goss Graves, disse que era preciso retratar mais abortos nas narrativas que ocupam as telas. “As histórias que vemos sobre abortos não se equiparam à nossa realidade”, ela disse.

Os participantes —agentes, celebridades e produtores, em um evento sobre diversidade exclusivo, organizado pela agência de talentos CAA— levaram a sério a mensagem de Goss Graves. E a realidade era que o setor já tinha começado a abandonar um de seus mais duradouros tabus.

Nos últimos anos, há um número recorde de abortos acontecendo ou sendo discutidos na televisão, em muitos casos em programas criados ou escritos por mulheres.

“Estamos claramente vendo mais situações tratadas com clareza, do tipo ‘estou grávida, não quero o bebê, vou abortar’”, disse Gretchen Sisson, socióloga da Universidade da Califórnia em San Francisco, que pesquisa, entre outras coisas, a maneira pela qual o aborto é retratado nas telas. “E em 2019 o número de exemplos cresceu muito”.

Até agora, pouco depois da metade do ano, cerca de duas dúzias de personagens em programas de TV, serviços de streaming e filmes passaram por abortos ou falaram sobre abortos, em muitos casos com franqueza —um desdobramento que seria impensável uma década atrás e que certamente irritou muitos adversários do aborto.

No episódio piloto de “Shrill”, Abby, uma mulher solteira da geração milênio interpretada por Aidy Bryant, professa se sentir “poderosa” depois de pôr fim à sua gravidez indesejada.

Em um dos episódios finais de “Veep”, a assessora política interpretada por Anna Chlumsky, que está grávida, sai ao ataque contra manifestantes antiaborto que estão protestando diante de uma clínica, gritando: “Eu cheguei até a rezar um pouco, e estou aqui”.

Em “She’s Gotta Have It”, a ambiciosa Clorinda, interpretada por Margot Bingham, defende a decisão de abortar diante do pai do bebê, declarando que qualquer coisa que ela faça com seu corpo é escolha dela. Nove das 11 pessoas que levaram crédito como roteiristas desses episódios são mulheres.

Os retratos em questão, como outros nas séries “Glow” e “Dear White People”, representam um desvio considerável ante a maneira pela qual o aborto era (ou não) retratado em roteiros da década de 1980 ao começo dos anos 2000.

Personagens que enfrentavam gestações não planejadas usualmente sofriam quanto ao que fazer ou, se a história se passava no passado, recorriam a procedimentos clandestinos. Em muitos casos, as mulheres escolhiam ter os bebês, ou sofriam abortos espontâneos. E abortos resultavam em problemas físicos ou morte.

Não é que os personagens atuais cheguem às suas decisões sem deliberar, mas suas ações são determinadas e diretas, como as de Becky, executiva de música interpretada por Gabourey Sidibe em “Empire”. Em determinado momento, ela diz que “minha situação não está ficando mais fácil, mas decidi abortar”.

Sisson se concentra em séries de TV e streaming em cartaz nos Estados Unidos, bem como em filmes, embora alguns filmes menores e independentes possam não chegar ao seu radar. Em 1987, um ano de muito menos programas de TV, ela contou três situações de aborto na TV e cinema: um em “St. Elsewhere”, um em “Dinastia” (resultando em infertilidade), e o procedimento fracassado em “Dirty Dancing”, que causou sérios problemas à professora de dança interpretada por Cynthia Rhodes.

Mas em 2018, Sisson identificou 18 exemplos de personagens que fizeram, revelaram, consideraram ou mencionaram abortos. Pouco depois da metade de 2019, o número de menções no ano já estava em 21, e Sisson antecipa que o total venha a ultrapassar a marca para 2017, que foi de 34 menções, um recorde.

Que mais personagens estejam fazendo abortos com menos arrependimento bate com os resultados de pesquisas de opinião nos Estados Unidos. As mulheres que passaram por abortos dizem por maioria esmagadora que tomaram a decisão certa, de acordo com um estudo divulgado em 2015.

Em outro exemplo de imitação da vida pela arte, mais mulheres não brancas vêm optando por abortos, nas telas. Sisson mencionou o efeito do aborto pelo qual passou Olivia Pope, a personagem de Kerry Washington na série “Scandal”, alguns anos atrás.

Shonda Rhimes, criadora da série, disse à revista The Hollywood Reporter em 2017 que foi pressionada pela rede de TV ABC a cortar a cena, mas fincou o pé; a ABC se recusou a comentar. “Rhimes abriu a coisa de forma que agora possamos falar disso no horário nobre da TV aberta”, disse Sisson.

Mas o pico recente de histórias sobre aborto tende a se concentrar nas TVs a cabo e serviços de streaming; com a explosão no número de séries novas, não está claro que mudança percentual isso representa. “Em termos de narrativa em redes abertas, no horário nobre, não temos muitos exemplos”, disse Kate Langrall Folb, diretora da Hollywood, Health & Society, uma iniciativa da Universidade do Sul da Califórnia que promove uma representação acurada das questões de saúde na TV e cinema.

Além disso, Sisson disse que o uso do contraceptivo Plan B (a chamada pílula do dia seguinte) não é retratado amplamente, e que resultados adversos para as mulheres que optam pelo aborto continuam a ser mostrados em séries que se passam antes da decisão judicial que autorizou o aborto em 1973.

Também há poucos programas que mostrem a situação dos provedores de serviços de aborto, ainda que haja um filme em produção estrelado por Michelle Williams como uma mulher que realiza abortos clandestinos antes de 1973.

Lara Shapiro, roteirista cujos créditos incluem a série “The Americans”, disse que produtores rejeitaram um piloto que ela escreveu sobre um médico católico nos anos 60 que relutantemente realiza um procedimento de aborto.

Mas o roteiro lhe abriu as portas para outros trabalhos. “As pessoas gostam de ler uma história provocativa, mas na hora de decidir elas precisam considerar os anunciantes, a política e os assinantes”, disse Shapiro.

Isso pode mudar. Sisson constatou que o número de abortos retratados na TV cresceu à medida que mais estados e políticos buscam limitar o acesso da mulher ao aborto e ao controle de natalidade.

Para alguns criadores e roteiristas, a conexão com a situação política atual é explícita. Lindy West, uma das criadoras de “Shrill” (e articulista do The New York Times) disse que normalizar o aborto é muito importante. Ela criou o hashtag #ShoutYourAbortion.

Mas Rachel Axler, coprodutora executiva de “Veep”, disse que ela e outros roteiristas foram instruídos a incluir um aborto na trama não por conta do ciclo noticioso, mas porque fazia sentido para o personagem de Chlomsky. “Para aquele personagem, era completamente a coisa certa a fazer”, disse Axler.

Um episódio de “Claws” em 2018 virava a perspectiva e tomava por foco os oponentes do aborto, e expunha pontos de vista contrastantes. Depois que Virginia, a manicure interpretada por Karrueche Tran, engravida, os demais personagens expressam suas opiniões sobre o assunto usando telas divididas.

No fim, Virginia é acompanhada à clínica de aborto por seu carinhoso namorado. Na saída, ele diz aos manifestantes que “vamos nos casar, pessoal!”, atraindo aplausos. Um manifestante grita “Deus é grande; ele ouviu nossas orações!”, ao que Virginia responde: “Não, nós fizemos o aborto mesmo assim”.

Janine Sherman Barrois, a executiva que responde por “Claws”, disse que os roteiristas queriam mostrar Virginia tomando decisão e seguindo adiante com sua vida. “Talvez seja parte do ‘zeitgeist’, mas acho que veio naturalmente, de uma equipe de roteiristas que percebeu o quanto avançamos”, disse Barrois.

West, Axler e Barrois disseram não ter sido pressionada pelas redes e estúdios que produzem suas séries. A aparente normalização do aborto em Hollywood irrita mas não surpreende os adversários da prática, entre os quais Cary Solomon e Chuck Konzelman, que escreveram o longa “Unplanned” (2019), baseado nas memórias de um diretor clínico da organização de controle da natalidade Planned Parenthood que se tornou ativista antiaborto.

“Hollywood é controlada pela esquerda”, disse Solomon. “Não se vê histórias pró-vida na TV”. Os dois afirmam que não procuraram financistas ou estúdios de Hollywood para bancar “Unplanned”, produzido em segredo. Disseram que as redes de TV se recusaram a veicular comerciais do filme, que o Google inicialmente classificou como “propaganda”.

“Unplanned” faturou mais de US$ 18 milhões nos Estados Unidos e vai bem no Canadá, a despeito de ter encontrado resistência por lá. “Foi criado um vácuo, e as pessoas que acreditam em algo diferente do que a esquerda acredita se sentem indignadas, e dizem que estão sendo silenciadas”, disse Solomon.

O cineasta Nick Loeb, que dirigiu “Roe vs. Wade”, filme que estreará em breve sobre o caso que autorizou o aborto, ecoou a ideia de que Hollywood ignora as legiões de americanos que reprovam o aborto, e que isso poderia ser desvantajoso economicamente.

Loeb, também conhecido por sua disputa judicial com a ex Sofia Vergara quanto a embriões congelados, disse que já recebeu ofertas de distribuidores, antes que eles vissem o filme. “Roe vs. Wade” é estrelado por Jon Voight, Stacey Dash e Loeb como o ativista antiaborto Bernard Nathanson.

“Ninguém está falando por nós, Hollywood não fala por nós”, disse Loeb sobre os oponentes do aborto. “Mas quando as pessoas fazem filmes para nós, os filmes são amados e adorados”.
 

Tradução de Paulo Migliacci

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