Descrição de chapéu Flip

Venezuelana fala na Flip sobre culpa do migrante, e brasileiro, sobre estereótipo de evangélicos

Karina Sainz Borgo e Miguel del Castillo participaram de mesa que debateu ditadura e religião

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Paraty (RJ)

Se sua estreia na ficção, já publicada em 26 países, fosse lançada naquele onde nasceu, a jornalista Karina Sainz Borgo chuta: um conterrâneo "gastaria salário de quatro meses para comprar meu romance". 

Fala da Venezuela, de onde saiu há mais de dez anos. Radicada em Madrid, ela veio à Flip falar sobre “Noite em Caracas” (Intrínseca, 240 págs., R$39,90), livro sobre a destruição causada pelo chavismo em seu país que causou frisson na Feira de Frankfurt de 2018.

Karina Sainz Borgo, escritora venezuelana que participou da mesa 'Jeremoabo' na Flip 2019
Karina Sainz Borgo, escritora venezuelana que participou da mesa 'Jeremoabo' na Flip 2019 - Julián Rojas/El País/Divulgação

Ela dividiu a mesa com o carioca Miguel Del Castillo, que na festa literária apresentou "Cancún", também seu primeiro romance. 

As duas obras "são quase tão distantes quanto as duas cidades", a mexicana e a venezuelana, avisa o mediador. Mas as duas narrativas se encontram em alguns pontos: ambas são movidas pelo luto (a perda de uma mãe e um pai) e têm como protagonistas personagens jovens que adolescem na virada do século 21.

O nome da mesa, "Jeremoabo", remete a um personagem central da Guerra de Canudos que fascinou Euclides da Cunha, o homenageado desta Flip. Cícero Dantas Martins, o barão de Jeremoabo, era o maior senhor de terras do sertão de seu tempo e mais feroz adversário de Antonio Conselheiro.

Eis a deixa para Borgo falar sobre o ciclo de opressão e poder em sua Venezuela, que a ela só resta observar à distância. E não sem culpa.

"Essa ideia da culpa é muito grande", diz Borgo. A Venezuela pré-Hugo Chávez, que morreu e passou o bastão para o ditador Nicolás Maduro, já era uma sociedade dividida "entre pobres e ricos, quem tem pão e quem não tem".

A escalada opressora afugentou muitos, e a "sensação daquele que saiu é que você não tem mais voz", afirma a autora. "É uma sensação muito forte que alimentei por muito tempo, como se não tivesse mais direito de falar do meu país."

Ela migrou para a Europa muito jovem, e o jeito, disse, foi levar "a ferramenta literária comigo, para lidar com a minha própria culpa". 

Borgo evocou Primo Levi, escritor ítalo-judeu que sobreviveu ao campo de concentração e registrou suas memórias em livros como "A Trégua" e "É Isto um Homem?". Acabou se matando, aos 68 anos. "Veja o que aconteceu com ele. Um sistema pode acabar alienando você." 

"Minha intenção, claro, não é comparar minha situação com a do Holocausto", esclarece na sequência. É, contudo, "muito difícil esquecer" o sentimento de não pertencer mais à própria pátria, disse. 

"Você nunca vai conseguir se livrar dessa culpa. Às vezes, quando há um vento e a porta fica batendo, batendo, batendo, tem uma hora que a quebradiça quebra." A literatura, afirmou, a ajuda a suportar essa dor que nunca sei vai. 

Se o chavismo pautou a experiência da venezuelana, Castillo falou sobre outro poder em ascensão no Brasil, o dos evangélicos.

Joel, o protagonista de seu livro, é acolhido por um grupo jovem da igreja evangélica que frequenta com sua mãe. 

Miguel del Castillo, escritor participante da Flip 2019
Miguel del Castillo, escritor participante da Flip 2019 - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Veja bem, o próprio Castillo é evangélico, de uma linha mais progressista. Ele contou que decidiu incluir essa dimensão religiosa no livro por conta de sua experiência pessoal. 

A ideia "era olhar para isso sem maniqueísmo", já que essa parcela crente do Brasil é por tantas vezes enxergada como um estereótipo e nada mais, afirmou. "A gente está num momento muito maniqueísta do país. Sempre que a gente lança um olhar atento de verdade a um assunto, a complexidade da vida se impõe. Às vezes a gente quer responder de modo simples a questões que são bem mais complexas."

O autor lembrou que o presidente Jair Bolsonaro se comprometeu a indicar um ministro "terrivelmente evangélico" ao Supremo Tribunal Federal. 

Sim, disse Castillo, "existe um fascínio pelo poder" entre parte dos evangélicos, algo que lhe soa "muito distante do que o Evangelho é em essência".

A atitude presidencial "parece que implica uma belicosidade, uma necessidade de impor algo à sociedade", e Jesus jamais faria isso, afirmou. "Me parece completamente incompatível com a essência do Evangelho, e é uma pena." Foi aplaudido.

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