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Edital suspenso após críticas de Bolsonaro previa séries com gays e evangélicos

Recursos viriam do Fundo Setorial do Audiovisual, com um total de R$ 70 milhões

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São Paulo

“Mas fazer um filme sobre negros homossexuais do DF, confesso que não dá para entender. Então, mais um filme aí que foi para o saco”, diz o presidente Bolsonaro em uma live no Facebook veiculada no último dia 15. Na transmissão, ele dedica cerca de quatro minutos a listar uma série de títulos “garimpados na Ancine” que, ele anuncia, conseguiu “abortar”.

“Afronte”, o projeto em questão, não era um filme, mas uma série, com direção de Bruno Victor e Marcus Mesquita. Dividida em cinco episódios, ela propunha misturar realidade e ficção ao acompanhar o cotidiano de um jovem chamado Victor Hugo, morador de São Sebastião, no Distrito Federal. Sua trajetória seria mesclada à de outros jovens, como ele negros e gays, que juntos formam um coletivo.

Também não estava prestes a captar recursos no mercado, como afirmou o presidente no início da transmissão. O projeto fora selecionado para a última fase de um edital de chamamento para TVs públicas, na qual seriam decididos os cinco recipientes finais dos R$ 400 mil da categoria de diversidade de gênero, cada um de uma região do país.

Os recursos viriam diretamente do Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, de um total de R$ 70 milhões divididos entre 80 projetos com orçamentos de até R$ 1,5  milhão, a depender da categoria de submissão. Estas iam de animação infantil a qualidade de vida.

Menos de uma semana depois da live, na última quarta, o Ministério da Cidadania cancelou o concurso por meio de uma portaria publicada no Diário Oficial da União. Ela suspende o edital por seis meses, renováveis pelo mesmo período, sob a justificativa da recomposição do comitê que estabelece as linhas de investimento do FSA.

Além de “Afronte”, outro inscrito na seção de diversidade de gênero foi mencionado por Bolsonaro —“Transversais”, dirigido por Émerson Maranhão.

Concorrendo na categoria de sexualidade, “Religare Queer”, com direção de Claudia Priscilla e roteiro de Kiko Goifman, e “O Sexo Reverso”, série de Janaína Marques inspirada nas conversas sobre sexo que uma antropóloga teve com a tribo matís, na Amazônia, também foram citados pelo presidente.

Produtor de “Transversais”, Allan Deberton diz suspeitar que Bolsonaro tenha tido acesso à lista final dos aprovados no edital cancelado pelos seus comentários na live.

A série dele, que assim como “Afronte” se inspirou num curta, acompanha os sonhos e dificuldades de cinco pessoas transgênero no Ceará.

Diretores de “Bixa Travesty”, documentário sobre a rapper trans Linn da Quebrada que ganhou prêmio no último Festival de Brasília, Claudia Priscilla e Kiko Goifman contam que Bolsonaro se confundiu quando citou o projeto da dupla na transmissão—ele mencionou um curta de Priscilla sobre uma ex-freira lésbica.

'Bixa Travesty': Vencedor do Teddy Award de melhor documentário em Berlim, acompanha a cantora Linn da Quebrada
Cena de 'Bixa Travesty', vencedor do Teddy Award de melhor documentário em Berlim - Divulgação

Na realidade, sua série documental “Religare Queer” investiga os modos como a comunidade LGBT lida com a fé.

O primeiro episódio, por exemplo, acompanha um evangélico gay da periferia que frequenta uma igreja inclusiva no centro de São Paulo.

“‘Bixa Travesty’ tem sessões lotadas e já rodou mais de 70 países. Óbvio que o que o Bolsonaro está falando é uma aberração”, diz Goifman sobre o comentário do presidente de que as produções LGBT listadas são “dinheiro jogado fora”. “Para ele, ninguém é relevante além do típico babaca branco, machista.”

“Nosso projeto é sobre querer entender o outro. É o que falta a Bolsonaro”, acrescenta Maurício Macêdo, produtor de “O Sexo Reverso”.

Ele e outros afirmam que os produtores das séries que passaram para a última fase do edital —número que ultrapassa os 200 projetos— agora se organizam para tentar reverter o cancelamento do concurso pela via jurídica.

Em entrevista, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, defendeu o cancelamento dizendo que a gestão não pode ser obrigada a “comer num prato feito no governo passado”.

Mas nomes ligados à Agência Nacional do Audiovisual, a Ancine, contestam a decisão. Diretora da agência de 2011 a 2014, Vera Zaverucha afirma que a interrupção de um edital em andamento por esse motivo é inédito.

André Klotzel, que participou do comitê da FSA até fevereiro deste ano e é membro da diretoria da Associação Paulista de Cineastas, a Apaci, não tem dúvidas de que o que o governo fez é censura.

“Não tem outro jeito de qualificar. Até uma pessoa do governo concorda”, diz, aludindo ao ex-secretário especial de Cultura, Henrique Pires. Demitido no mesmo dia do cancelamento do concurso, ele diz que o Planalto encontrou “uma maneira criativa de fazer censura, mas é censura”.

Um dia depois, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro abriu um inquérito civil para apurar se a discriminação contra a comunidade LGBT está por trás  do cancelamento do edital.

Não é a primeira vez que o governo é acusado de cercear a liberdade de expressão. Desde meados de julho, quando Bolsonaro anunciou que extinguiria a Ancine caso não pudesse implementar “filtros culturais”, suas tentativas de intervir na produção audiovisual preocupam cada vez mais o setor. Então, ele anunciou a mudança da sede da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília e fez alterações no Conselho Superior do Cinema.

Diretor de “Afronte”, Bruno Victor diz que faltou posicionamento da Ancine a respeito do cancelamento do edital por parte do governo.

Na realidade, no Festival de Gramado, na semana passada, o diretor-presidente da agência, Christian de Castro, se pronunciou sobre o caso.

Ele qualificou o cancelamento do edital de um “convite ao diálogo” e pediu “menos enfrentamento” por parte dos cineastas. Segundo relatos, os presentes ficaram indignados com os comentários.

Colaboraram Paula Sperb, de Gramado (RS), e Talita Fernandes, de Brasília

Séries inscritas no edital suspenso

‘Afronte’ (DF)Entrelaça a jornada de de um jovem gay e negro da periferia com as de outros 15 na mesma situação

‘Religare Queer’ (SP)Investiga como membros da comunidade LGBT se relacionam com fés diversas

‘O Sexo Reverso’ (CE)A partir do reencontro de uma antrópologa com os indígenas matís, na Amazônia, aborda as diferenças das práticas sexuais nas duas culturas 

‘Transversais’ (CE)Aborda sonhos e desafios de cinco pessoas transgênero no Ceará

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