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Filme mostra como tráfico de maconha corrompeu cultura indígena na Colômbia

Ambientado numa época anterior à dos cartéis de cocaína, 'Pássaros de Verão' usa elementos da tragédia clássica

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Cena do filme 'Pássaros de Verão', de Cristina Gallego e Ciro Guerra

Cena do filme 'Pássaros de Verão', de Cristina Gallego e Ciro Guerra Divulgação

São Paulo

A Guajira é a região que ocupa a parte mais ao norte da Colômbia. Essa extensão quase toda desértica, que se espraia até o mar do Caribe, é o território dos wayúus, maior povo indígena do país.

É ainda o palco do período conhecido como “bonanza marimbera”, que vai dos anos 1970 até o começo dos anos 1980, durante o qual a maconha era ouro para os wayúus, que produziam e traficavam a erva para os Estados Unidos.

O tráfico causou uma guerra entre clãs, matando 250 pessoas; sua história, anterior à dos cartéis da cocaína, é contada em “Pássaros de Verão”, que chega agora aos cinemas. 

É um filme de narcotráfico, mas não nos padrões associados ao gênero, em voga no streaming. É um filme de gângsteres, mas não à moda hollywoodiana, embora na base de tudo haja uma guerra familiar. É um épico grego, mas permeado dos rituais e da mitologia dos wayúus e falado em boa parte no idioma wayuunaiki.

“Pássaros de Verão” se divide em capítulos, chamados de cantos como numa tragédia clássica, e tem mesmo um narrador que, como um aedo, entoa parte da narração.

Ciro Guerra, que dirige o filme com Cristina Gallego, diz que o “canto jayeechi” é a forma com que o povo wayúu sempre narrou sua história. “É sua literatura, seu noticiário, seu cantar épico.”

Uma forma “muito parecida à maneira como os gregos contavam sua história no passado”. E a história do filme, diz ele, “tem muito em comum com a tragédia grega”.

O resultado poderia ser estranho ou cansativo —mas é fascinante. Com sutileza, a dupla mostra como a cultura é alterada pela ganância.

Não que os indígenas sejam retratados de forma condescendente ou romântica. “Por sua localização geográfica, eles sempre viveram do contrabando”, diz Guerra. Mas, por outro lado, não tinham como antever a transformação.

“Ninguém sabia as consequências, a maconha não era ilegal. Foi criminalizada nos anos 1970. Para eles era uma erva qualquer, como o cominho.”

Os wayúus, diz, não tinham como estar preparados para a “chegada do capitalismo em sua forma mais selvagem”.

No filme, esse processo se traduz em detalhes claros, mas não óbvios; a mochila de crochê, artefato tradicional dos wayúus, dá lugar a bolsas de couro; onde havia casas tradicionais de pedra, um casarão de ares modernos surge no meio do nada.

Guerra e Gallego trabalharam por dois anos levantando informação na região —de onde veio ele e onde haviam feito, 11 anos atrás, “As Viagens do Vento”. 

Ali, ouviram histórias dos moradores. Parte do elenco —cerca de um terço dele é de não atores escalados na comunidade— viveu os fatos.

A história de como Rapayet passa a traficar erva a fim de pagar o dote exigido para se casar com sua pretendida Zaida e os desdobramentos dessa decisão, porém, são fictícios.

“Pássaros de Verão” é a estreia de Cristina Gallego na direção. Ex-colega de faculdade e ex-mulher de Guerra, produziu os outros três filmes dele. 

Seu trabalho anterior, “O Abraço da Serpente”, projetou a dupla e o cinema colombiano mundialmente, ao disputar o Oscar de filme estrangeiro há três anos —perdeu para o húngaro “O Filho de Saul”.

Foi também o sucesso do longa anterior que permitiu que se dedicassem a essa produção, que exigiu nove semanas de filmagem em meio ao deserto e às crenças que os wayúus ainda preservam.

Gallego diz que, na cultura local, as mulheres têm um papel preponderante. Foi esse aspecto que despertou seu interesse em passar para a direção.

A família é o núcleo da sociedade wayúu, de base matriarcal. A mãe de Zaida se torna figura central, fazendo o contraponto ao genro, Rapayet, que introduz o clã no tráfico.

Não por acaso, ela se chama Úrsula, como uma das personagens de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, que, como o filme, trata da destruição de uma família. 

Na pesquisa, conta Gallego, souberam que o escritor tinha sido criado por wayúus. “Tudo isso está em sua literatura e usamos elementos, mas pensando que tínhamos de ser fiéis apenas à nossa história e aos nossos personagens.”

Como numa boa tragédia, não falta a violência. Entretanto ela é tratada com sobriedade, ressaltando mais seus resultados do que a ação em si.

“Havia uma decisão clara de não fazer dela um espetáculo, mas um evento transformador. Queríamos falar de como a violência impacta não as vítimas, mas quem a comete.”

Esse ponto de vista colado nos personagens afasta a possibilidade moralizante. “Não é um filme de mocinhos e bandidos”, frisa a diretora, lembrando que seu próprio país vive sob juízos preconcebidos.

“Colombianos são terroristas, são traficantes. Era importante aproximar o espectador dos personagens de uma forma que ele não os julgasse.”

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