Indústria do sertanejo em Goiânia se transforma em linha de montagem de hits

Composições podem custar R$ 5.000; se o cantor quiser exclusividade da música, o valor então pode crescer cinco vezes

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Goiânia

Waleria Leão está com pressa. Falta pouco para as 22h de uma quinta-feira, quando ela faz a quarta reunião com um cantor no dia. “Toda hora tem artista aqui. O que faço em um dia demorava um mês para conseguir em São Paulo”, ela conta.

Filha da consagrada compositora Fátima Leão —de “Dormi na Praça”, de Bruno & Marrone—, ela está há cerca de dez anos em Goiânia, seguindo a profissão da mãe. Em seu escritório, num prédio comercial, ela recorre aos quadros na parede para refrescar a memória.

Ilustração de cantor sertanejo para a capa da Ilustrada do dia 1º.set.2019
Fido Nesti

Cada imagem de cantor ou dupla sertaneja traz o nome da música que ela criou ao lado. “Preciso deixar só os nomes dos artistas, tem vários para quem já fiz mais de uma.” No estúdio ao lado, três jovens parceiros da compositora gravam um projeto de refrão sobre preferir a vida de solteiro.

Em alguns dias, aquela música pode valer R$ 5.000 só pela liberação —quando um cantor paga pelo direito de gravar a canção. Para ser o único a poder registrar determinada faixa por um período de tempo —em geral um ano—, é necessário negociar a exclusividade, e o valor então pode crescer quatro ou cinco vezes.

Isso é a maior fonte de renda dos compositores de música sertaneja. Há também o dinheiro de direitos autorais, repassado pelo Ecad, órgão que cobra as rádios e afins pela execução das músicas e paga os artistas, mas sobreviver disso é privilégio dos autores de hits.

Hoje, Goiânia é a capital do negócio de composições. Quando alguém como Gusttavo Lima ou Wesley Safadão está montando o repertório de um disco, ele vai à cidade para as audições, que são reuniões de cantores, agentes e compositores para caçar músicas.

“Até Marília Mendonça, uma das melhores compositoras, hoje só pega música de outras pessoas”, diz Everton Mattos, um dos cabeças do grupo Single Hits. “Os artistas têm agenda lotada. O tempo que sobra ele quer passar com a família.”

“Todo mundo está vindo para cá. O Vine Show [que escreve para Safadão e Zé Neto & Cristiano, entre outros], por exemplo, é do Nordeste”, nota Mattos, falando sobre o autor potiguar, que integra outro grupo, o Seu Hit, ou “os meninos do Nordeste”. Além deles, há em Goiânia outros coletivos, como o Big Jhows, de “Jenifer”, hit na voz do Gabriel Diniz, morto em maio deste ano.

Com 17 músicas de trabalho —as que ganham investimento em rádio—, o Single Hits existe há três anos. Entre seus maiores sucessos estão “Homem de Família”, de Gusttavo Lima, e “Ciumeira”, de Marília Mendonça. Os seis integrantes trabalham numa casa com sinuca, piscina, churrasqueira e, claro, um estúdio.

“Às vezes o clima não está bom, você vai bater uma sinuquinha”, conta Mattos. “Para fazer uma música boa, você tem que fazer cem ruins.”

A conta faz sentido. Todos os dias, o Single Hits faz de seis a dez canções, mas aproveita menos de um décimo delas. “Só quando você se convence de que uma música é boa, você faz a guia”, diz Paulo Pires, integrante do grupo. “Depois você grava, põe voz, afina, separa as melhores, decide com qual artista elas combinam e só aí você envia.”

“O artista tem que gostar, o empresário tem que apostar, o produtor tem que acertar a mão”, diz Ray Antonio, para quem é necessário um “alinhamento de planetas” para uma música dar certo.

Além de convencer o artista a gravar suas letras, os autores brigam para emplacar a música de trabalho, que recebe investimento. “Se você pegar as 20 mais tocadas na rádio, todos pagaram o mesmo valor”, diz Antonio. “O que diferencia se é a primeira ou a vigésima é se a música é boa ou não.”

Uma música de trabalho também serve de vitrine. Se um compositor consegue ter um hit, ele ganha visibilidade. Se o segundo hit não vem, ele acaba vivendo de liberação e exclusividade.

Mesmo não sendo uma novidade, o mercado de compositores está em ascensão há cerca de dez anos, com o estouro do sertanejo universitário. As plataformas de streaming e o acesso às redes móveis de celular só ajudaram o negócio.

Waleria Leão lembra que a mãe, Fátima, dependia do Ecad, porque não havia dinheiro de liberação e exclusividade. “Ela foi pioneira, a única mulher fazendo isso”, conta.

A autora já tinha um sucesso —“Pode ir Embora”, de Bruno & Marrone—, mas sua carreira mudou quando ela fez uma promoção. Em 2016, vendeu a liberação de “50 Reais” a uma então desconhecida Naiara Azevedo só por R$ 1.000. Sucesso instantâneo, a música virou hino do “feminejo”.

“Foi aí que descobri uma receitinha”, diz. “Você tem que falar o que a mulherada quer ouvir, fazer ela se sentir especial. Nada de amante que some. Amante tem que ser bem tratada, tem muita mulher que é amante.”

Ela explica que, a partir de “50 Reais”, faz “música feminina”, mesmo seus maiores sucessos sendo cantados por homens. “Agrado a mulher, só que na voz do homem. Tipo assim [canta ‘Delicinha’, que ela fez para Gabriel Gava]: ‘Delicinha, volta para a vida minha’.”

Em evidência há três anos, os compositores de Goiânia ficaram conhecidos em todo o país só no ano passado, quando ninguém conseguia explicar o sucesso espontâneo de “Jenifer”. Mas as tais “músicas de internet” —baseadas em memes—, hoje, estão em baixa.

“Fiz uma sobre a OLX, e o artista disse: ‘A sua é melhor que as outras’. Ou seja, todo mundo estava fazendo música sobre OLX”, diz Everton Mattos. Waleria, que viveu a mesma situação, não quer mais saber de “música de sacadinha”.

No ramo desde 1998, Mattos nunca ganhou tanto dinheiro. “Hoje, todo mundo está com carrão, casarão”, conta.

Já Waleria, apontando um leãozinho de gesso sobre a mesa, nota o surgimento de “aproveitadores” —sinal do crescimento do mercado. “Se esse leão resolver fazer música, vira compositor”, ri. “É um mercado prostituído e que dá retorno. Basta sentar com a pessoa certa no lugar certo.”

As fontes de renda dos compositores sertanejos

Liberação Para gravar uma música de um escritório, o cantor precisa pagar pela liberação, que pode custar de R$ 4.000 a R$ 5.000 entre os compositores mais renomados. Alguns fazem preços mais acessíveis para iniciantes que eles julgam ter algum potencial

Exclusividade Enquanto a liberação garante o direito de gravar e trabalhar uma composição, a exclusividade garante que ninguém mais vai poder fazer isso. Pelo menos por um período determinado de tempo, geralmente de um ano. O preço disso pode ser quatro ou cinco vezes o da liberação

Direitos autorais Entre maio e julho deste ano, as cinco músicas que mais renderam direitos autorais no país são sertanejas, de compositores que vivem em Goiânia. O Single Hits tem uma delas: ‘Ciumeira’, cantada por Marília Mendonça. Mas só vive de Ecad quem consegue produzir hits com alguma frequência

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