Livros que procuram retratar o vazio, sobretudo o de uma juventude vista como perdida e superficial, costumam focar em uma vida de aparências marcada pelas noitadas, pelo consumismo, pelo uso recreativo ou compulsivo de substâncias lícitas ou ilícitas.
“Meu Ano de Descanso e Relaxamento” é diferente, pelo menos em parte. Tudo o que a protagonista —que além de rica é “alta, magra, loira, bonita e jovem”— quer é dormir. Em junho de 2000, ela começa a “hibernar”.
Levando a negação e o escapismo ao extremo, mais ou menos como “uma medida de autopreservação”, sua intenção é evitar “as misérias” de sentir e pensar. Para isso, ingere quantidades assustadoras de medicamentos tarja preta, todos prescritos pela desmiolada dra. Tuttle.
Elogiado no exterior, o romance de Ottessa Moshfegh chega ao Brasil com ótima tradução de Juliana Cunha. Um dos maiores trunfos da autora é evitar tanto o melodrama quanto uma crítica genérica de um mal que sempre parece igualmente genérico. Outro é descrever um vazio existencial sem criar esse mesmo vazio na narrativa. Moshfegh consegue tudo isso sem fazer um grande esforço para tornar a narradora privilegiada palatável ou suas escolhas compreensíveis.
Quem vê nas festas, compras e dietas uma forma de compensação pelos infortúnios é Reva, amiga e alvo constante da crueldade da protagonista —que identifica a própria superioridade nos altos e baixos da outra, nas suas frases feitas e tentativas de se encaixar num padrão. Seu conforto ilusório é ter em Reva um suposto negativo.
Ao se retirar para a inconsciência, a protagonista quer deixar para trás as lembranças de uma infância sem afeto, com pais que eram como dois estranhos. Quando o período de hibernação tem início, tanto o pai (antes enfurnado no escritório, cercado de livros e papéis) quanto a mãe (antes enfurnada no quarto, bebendo vodca e vendo TV) já morreram. Em grande medida, o sono é uma forma de lidar com o luto.
A partir do presente estéril, preenchido por idas à psiquiatra, maratonas de filmes e visitas indesejadas de Reva, a narradora oferece vislumbres de um passado igualmente triste. As poucas memórias do antigo lar são quase todas visuais ou táteis —as roupas em tons claros, o carpete felpudo, a madeira encerada. Se envolvem alguma emoção, é a melancolia.
O ponto de virada ocorre quando um dos medicamentos passa a provocar apagões. A nova ideia da protagonista para se manter inconsciente, e para emergir renovada, é muito mais radical que a anterior. É aí que entra a questão do despojamento, que não diz respeito apenas ao entulho mental.
A visão da narradora de Moshfegh, que é formada em história da arte, é ao mesmo tempo afiada e cansada. Do início ao fim, decifra signos e os julga de forma implacável. Quase nada a surpreende. O ano de descanso e relaxamento pode lhe ensinar a enxergar o que importa.
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