Mulheres comandam ópera de Rossini com heroína que não faz papel de boba

A encenadora Livia Sabag e a regente Valentina Peleggi transportam 'L'Italiana in Algeri' ao mundo contemporâneo

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duas mulheres de preto em fundo escuro

A encenadora Livia Sabag e a regente Valentina Peleggi Heloisa Bortz/Divulgação

São Paulo

Em “Rigoletto”, ópera de Verdi de 1851 que esteve há pouco no palco do Theatro Municipal, em São Paulo, 
Gilda, a mocinha da trama, morre para proteger o homem que ama, mesmo sabendo que ele a traiu e a enganou.

O repertório lírico está cheio de mulheres sendo passadas para trás, sofrendo desnecessariamente, ou, que quando são espertas ou sensuais, como Carmen, acabam punidas, muitas vezes com a morte.

Mas estreia agora, no Theatro São Pedro, uma trama que sai dessa rota. “L’Italiana in Algeri”, ou a italiana em Argel, de Rossini, tem como protagonista Isabella, uma mulher que passa a perna num poderoso bandido, Mustafá, se livra de suas garras asquerosas e ainda termina a história com o homem que ama.

A italiana da ópera de 1813 entrou no cânone como uma mulher que vence não por sua beleza, mas por sua astúcia, a despeito do mundo machista.

“Isabella é uma mulher moderna, independente, que luta contra a figura machista do Mustafá, um autoritário”, diz Livia Sabag, responsável pela direção cênica do espetáculo. 

“Mustafá é abertamente machista, diz que tem que subjugar as mulheres. Reconhecemos a fala como um discurso que está aí. Vivemos um momento em que a luta pela igualdade está sofrendo um baque e achei importante destacar isso, tornar esse personagem mais reconhecível e mais próximo.”

A regente Valentina Peleggi, que defendeu a montagem da obra nesta temporada do teatro, diz acreditar que a escolha fazia sentido neste momento. “Ela trata de assuntos contemporâneos, que têm uma urgência na sociedade, e, como linguagem musical, faz a orquestra crescer”, diz.

Na visão dela, a ópera é “perfeita como escrita”. A obra de Rossini se insere na tradição do “bel canto”, que, segundo Peleggi, é a “máxima expressão artística, na qual o canto e a orquestra são percebidos como uma coisa única”.

A regente explica que esta forma de expressão é baseada na elegância e que, ali, a musicalidade das frases se dá exatamente como a inflexão da palavra, começando como num fôlego para falar.

A opção de Sabag foi de transportar a trama para uma Argélia do século 21, com antenas em lajes, celulares e grandes armas carregadas por capangas em roupas que misturam o preto e o camuflado.

“Quando comecei a levantar as imagens da Argélia contemporânea, muitas coisas eram parecidas com o Brasil”, diz ela, explicando o primeiro quadro da ópera, que remete a um local precário e tropical. 

“Mustafá é um líder que rouba mercadorias e sequestra pessoas, então na nossa montagem é um corrupto que rouba cargas de navios cargueiros”, completa ela. O segundo quadro do espetáculo é a área de contêineres num porto.

Segundo Sabag, o mais interessante do trabalho é mostrar o que significa hoje uma ópera, ainda que escrita há centenas de anos. “Por tradicionalismo, existe mais liberdade na encenação do que na interpretação musical. Mas isso são convenções, não uma lei. Quem manda e diz que tem que ser assim?”, pergunta.

O público de ópera é, porém, em suas palavras, “extremamente conservador”, e é comum crítica e público se queixarem de montagens que busquem modernizar as obras.

“Para mim é cada vez mais importante olhar o texto e poder dar a minha visão, ver o que a encenação pode provocar, desdobrar, sensibilizar, num contexto atual”, diz ela.

Mas não é só para as mulheres da ficção que as coisas são difíceis na música. “Para uma mulher, é muito delicado quando se escolhe passar da música como paixão a uma profissão”, diz Peleggi.

“A mulher tem que lidar com muitos outros assuntos, é um tipo de trabalho no qual se está viajando sempre. Quando um homem faz isso, é normal, é trabalho, mas para a mulher, é como se estivesse abandonando assuntos ligados à família, a amigos.”

Se o universo da música, de compositores a membros de orquestras, é dominado pelos homens, para regentes é ainda mais complicado. “A regência está ligada ao conceito de liderança e esse papel é masculino. A mulher tem que achar seu próprio caminho, seu modo de liderar, e isso tem a ver com respeito, e com salário”, reforça Peleggi.

L’Italiana in Algeri

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