Ópera sobre abuso sexual escrita por mulheres chega ao Theatro Municipal

'Prism' arrebatou plateias americanas com inovações no gênero, entre elas o uso de música pop e eletrônica

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Cena da ópera 'Prism' Maria Baranova/Divulgação

São Paulo

Em 1990, o Theatro Municipal de São Paulo encenou a ópera eletroacústica “Fata Morgana”, da brasileira Jocy de Oliveira. Só quase três décadas depois, a principal casa lírica da cidade volta a hospedar uma ópera escrita por uma mulher. 

Recém-estreada nos Estados Unidos —foi apresentada em Los Angeles em novembro do ano passado e em Nova York em janeiro deste ano—, “Prism” é a primeira incursão pelo gênero da compositora Ellen Reid, 36, e conquistou, em abril, o prêmio Pulitzer de música.

“Prism” gira em torno do abuso sexual e suas consequências. O libreto é uma história original e foi escrito por outra mulher, a dramaturga Roxie Perkins, em sua estreia como libretista de ópera. 

O gênero está repleto de enredos nos quais mulheres aparecem sofrendo abusos. 

Em “Don Giovanni”, de Mozart, elas são troféu e conquista para o protagonista; “Rigoletto”, de Verdi, última ópera apresentada no mesmo Theatro Municipal, começa com um estupro, que será seguido por outros no desenrolar da trama. Já a famosa “Carmen”, de Bizet, uma das poucas heroínas que não se dobra aos desejos masculinos, acaba vítima de feminicídio.  

Nesse sentido, embora “Prism” não aborde um tema novo, o ponto de vista muda. Agora, o abuso sexual é mostrado sob a perspectiva da mulher que o sofre e não do abusador ou da moral estabelecida. 

Lumee e Bibi são mãe e filha. Quando a ópera começa, elas estão num pequeno quarto, extremamente limpo e com poucos móveis, um lugar que chamam de “santuário”. 

As pernas de Bibi não se movem e, para se deslocar da cama para a cadeira, ela tem de ser carregada por Lumee. Bibi tem 20 anos, mas parece ter bem menos. Os motivos da fragilidade de Bibi e do cuidado extremo de sua mãe —que quer impedir que ela deixe o “santuário” a qualquer custo— vão se revelando aos poucos para o público. 

As duas únicas personagens de “Prism” foram desenvolvidas em conjunto por Reid e Perkins. Ao total, foram cinco anos de trabalho. 

“Eu diria que nos primeiros três anos, basicamente eu escrevia muito, enviava a Ellen e a partir daí conversávamos, trocávamos ideias e eu reescrevia”, lembra Perkins. 

Ela conta que o trabalho envolveu workshops em universidades, nos quais primeiro apresentaram o libreto. O segundo passo foi apresentar trechos da peça ao piano, até que finalmente toda a obra foi ouvida na Universidade de Ilinois. 

“Só nesse momento é que consideramos que o libreto estava pronto, mas o trabalho com a música ainda se prolongou por algum tempo.”

Ellen Reid conta que a ópera começou a ser estruturada antes do movimento MeToo e que “o assunto estava muito menos em evidência do que está agora”, mas que durante o processo de escrita o “diálogo nos Estados Unidos ia crescendo”. 

Mesmo que tenham partido de experiências pessoais, autora e libretista afirmam que a obra não está baseada em suas vidas. “O que queríamos era criar algo que as pessoas pudessem se identificar independentemente de sua experiência”, diz Reid.

A atmosfera delicada e um tanto desconcertante do primeiro ato —uma espécie de “realidade mágica”, segundo Roxie Perkins— muda radicalmente no segundo, quando a narrativa recua no tempo para justificar o que foi visto até então. É só no terceiro e último ato que a história se desenrola no presente. 

“É o momento em que Bibi pode ver o mundo como ele é”, diz Perkins. As idas e vindas temporais têm o objetivo de não revelar ao público de imediato o que acontece. “Não queríamos que eles julgassem os personagens por suas ações logo no início.”

Musicalmente, a obra muda bastante a cada ato, com sonoridades que vão do lírico ao selvagem. Da mesma forma, numa estética que pode ser classificada de pós-moderna, música tonal tradicional se une a modos alternativos de tocar instrumentos e a flertes com a música eletrônica pop. 

O resultado, longe de ser uma colcha de retalhos, é uma música impactante e alinhada aos diferentes momentos da narrativa. Segundo Reid, o objetivo é que a ópera seja crível do ponto de vista de Bibi. “Estamos sempre sentindo o que ela sente; há momentos em que a música se move de algo interno, as emoções de Bibi, para algo externo, o ambiente que a rodeia.”

Há ainda um coro, chamado Chroma, que funciona como uma voz interior de Bibi, operando às vezes como um terceiro personagem. Chroma existe na mente de Bibi e não aparece em cena. Na única vez em que está no palco, assume a figura de quatro dançarinos. 

Esse coro tem um papel discreto no início e vai crescendo no decorrer da trama. 

Mesmo que a obra fale de abuso sexual, o abusador nunca aparece. “Era importante fazer uma peça que lidasse com as consequências emocionais do abuso, mas que não se centrasse na figura do abusador”, diz Perkins, a libretista. “A ideia era explorar a experiência interior da personagem Bibi.”

Uma das figuras centrais por trás da bem-sucedida trajetória de “Prism” é a empresária Beth Morisson. Inicialmente uma cantora de ópera, ela fundou em 2006 o Beth Morrison Projects, o BMP. “Eu queria criar um novo tipo de ópera, mais socialmente relevante, usando jovens vozes contemporâneas falando ao nosso tempo, alargando os limites da forma e que fosse teatral e multimídia”, ela afirma.

Morrison conta que começou do zero em Nova York, sem dinheiro ou apoios. Conseguiu montar quatro pequenas produções no primeiro ano e, aos poucos, foi ficando conhecida entre os jovens compositores e artistas. 

Nas próximas temporadas, o BMP vai produzir 185 performances nos cinco continentes. Morrison afirma que busca trabalhos “do nosso tempo” e procura dar apoio a criadoras mulheres para fomentar “um novo cânone operístico americano para o futuro”.

Em São Paulo, “Prism” terá grande parte da equipe original. A mezzo-soprano Rebecca Jo Loeb e a soprano Anna Schubert interpretam respectivamente Lumee e Bibi, enquanto James Darrah assina a direção cênica. 

Uma formação de câmara da Orquestra Sinfônica Municipal será regida pelo maestro Roberto Minczuk, que também assina a direção musical. Chroma, o coro, fica a cargo do Coral Paulistano, regido por Naomi Munakata.

Ellen Reid e Roxie Perkins estarão na cidade acompanhando as récitas e não escondem o entusiasmo com a estreia brasileira. Reid destaca que “essa é uma obra acessível a muitas pessoas” e que “mesmo quem não gosta de ópera vai se interessar por ‘Prism’”.

Prism

  • Quando Estreia dia 4/9. De ter. a sáb., às 20h. Dom., às 18h. Até 14/9; exceto dias 6 e 12
  • Onde Theatro Municipal - pça. Ramos de Azevedo, s/nº
  • Preço De R$ 20 a R$ 120
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