Peça faz público sofrer na pele sensação de ser internado num hospício

Espetáculo sobre Camille Claudel e Vaslav Nijinski recria labirintos de instituições psiquiátricas

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São Paulo

“Dizem que sou louco por pensar assim.”

Sabe esses velhos versos dos Mutantes , cantados também por Ney Matogrosso? Eles servem para um monte de situações —podem estar falando de pacientes psiquiátricos, de desajustados sociais, servem também para artistas incompreendidos e, quem sabe, para bêbados e boêmios.

O importante é que o sujeito que se expressa nessa canção não fala só de si mesmo. Está se referindo a um outro, ou a uns outros, aqueles que, ajustados a um comportamento social de uma época, apontaram o dedo e disseram “esse cara precisa de cuidados”. 

O espetáculo “Balada dos Enclausurados”, que estreou no Teatro do Núcleo Experimental, é centrado em dois desajustados de primeira grandeza, a escultora Camille Claudel e o bailarino Vaslav Nijinski. A questão central no espetáculo é essa mesma, entender o que causou, a eles, a imposição de longos períodos de clausura em sanatórios.

Antes de chegar aos dois espaços ocupados, isoladamente, pelos atores Eric Lenate e Erica Montanheiro, o espectador vai percorrer um labirinto. No caminho, passará por uma sala de eletrochoque, uma solitária com paredes e pisos acolchoados.

“‘E se fosse eu que estivesse aqui?’ Era essa a pergunta que a gente queria colocar na cabeça das pessoas enquanto elas percorressem esse projeto expográfico”, diz o cenógrafo da peça, Kleber Montanheiro. Assustadores, os elementos que compõem esses ambientes são reproduzidos a partir de livros e fotografias que documentam as metodologias de tratamento psiquiátrico do século passado.

No fim do percurso, o público encontra um dos dois atores. Pode ser Erica Montanheiro na pele de Claudel, e depois o espectador migra para a sala onde Lenate assume a figura de Nijinki. A ordem se inverte, dependendo do dia. Ele dirigiu ela em seu monólogo, e ela o dirigiu no dele. Os ingressos podem ser comprados separadamente para cada um dos dois solos.

Os interpretes também são autores dos textos aos quais dão voz. São estudos livres inspirados em registros deixados pelos dois artistas. Na história de Nijinki e de Claudel, Lenate e Montanheiro espelham suas questões pessoais.

Lenate conta que iniciou o processo de escrita de seu texto antes de se deparar com os famosos diários que Nijinki (1889-1950) deixou para a posteridade. Ele foi diagnosticado com “confusão mental de natureza esquizofrênica”. 

O dançarino já havia dançado as coreografias “L’Après Midi d’un Faune” (“Prelúdio à Tarde de um Fauno”) e “Le Sacré du Printemps” (“A Sagração da Primavera”) e imprimido o que seria visto como embrião da dança contemporânea. Em 1919, depois do reconhecimento, inicia uma peregrinação de 30 anos por instituições psiquiátricas.

“O que adianta botar o cara dentro de uma jaula? Ele fica lá, você acha que ele está ok porque ele está sozinho e, quando você bota ele no convívio de novo, você vê que não está tudo bem”, resume Lenate, apontando a ineficácia de terapias que, como mostrado nas peças, foram se aproximando de métodos de tortura.

“É no convívio que você se reconhece. Justamente na relação de alteridade que você vai se moldando à vida e vai entendendo o quanto do seu comportamento e da própria vida está em desordem”, prossegue o artista, ele próprio diagnosticado como bipolar.

O interesse de Montanheiro por Claudel (1864-1943) também se relaciona com os limites impostos às mulheres na sociedade patriarcal da primeira metade do século passado. Em 1996, em entrevista concedida à Folha, a psicoterapeuta Liliana Liviano Wahba localiza a causa das internações da escultora entre as imposições do gênero.

“Ela ousou duplamente, por ser uma mulher escultora, o que era raro, e por escolher temas, como os nus, que não eram adequados para uma mulher. Por ser mulher, ela foi discriminada no mercado das artes. Sua personalidade começou a ser desmontada também por causa disso”, disse, se baseando em três anos de estudos sobre a artista.

Antes de ser internada, Claudel viveu na companhia do escultor Auguste Rodin, de quem foi aprendiz, assistente e amante. Parte de suas memórias foram recuperadas nas cartas que ela deixou e nas quais mostra incompreensão sobre o próprio destino.

Na visão dos autores, a peça também cria uma metáfora para a atual situação política, na qual avança uma campanha conservadora para isolar a arte. “Essas pessoas estão dizendo que o livre pensamento é perigoso”, diz Lenate. 

Balada dos Enclausurados

  • Quando Sex., sáb. e seg., às 19h e às 21h. Dom., às 18h e às 20h.
  • Onde Teatro do Núcleo Experimental (r. Barra Funda, 637, Barra Funda)
  • Preço R$ 20 (para cada peça) ou R$ 40
  • Classificação 14 anos
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