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'Years and Years' reflete voluntarismo infantil da militância progressista

Nova série da HBO denuncia problemas, mas a ela falta um diagnóstico mais aprofundado

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Jerônimo Teixeira

O bebê Lincoln Lyons não terá lá grande importância para a trama, mas é seu nascimento, neste ano de 2019, que dispara o relógio prospectivo da minissérie "Years and Years", da HBO.

No primeiro episódio, um tio do recém-nascido especula sobre o mundo em que seu sobrinho viverá e então os anos começam a correr pela tela, em uma sucessão de acontecimentos que nada mais fazem do que aprofundar crises já vividas hoje. 

A guerra comercial entre Estados Unidos e China se intensifica com a reeleição de Donald Trump, mudanças climáticas ganham proporções catastróficas, refugiados da Ucrânia, anexada pela Rússia de Putin, carregam uma nova crise humanitária para a Europa Ocidental —e, detalhe paroquial inescapável para uma série inglesa, a rainha Elizabeth 2ª morre.

O desfile de desastres vai engolfando os personagens e também o espectador, que naturalmente se identifica com esse futuro demasiado próximo.

O truque da série criada por Russell T. Davies está na apresentação de um mundo ao mesmo tempo extremado e plausível, estranho e familiar. Talvez só depois que esse equilíbrio é esfacelado pela incongruente revolta popular do episódio final se consiga discernir, em retrospecto, o fundo moralizante que perpassa toda a narrativa. 

O futuro soturno profetizado por Davies é uma permanente acusação às classes médias europeias, cuja passividade permitiu que se chegasse a um mundo novo nada admirável. Essa acusação, aliás, é explicitamente formulada no indigesto discurso que Muriel (Anne Reid), a anciã da família Lyons, profere em uma ceia de Ano-Novo (e o ano é 2029).

"Years and Years" não faz proselitismo partidário, mas suas deficiências narrativas refletem certo voluntarismo infantil que é típico da militância progressista contemporânea. A moral da história é que algo deve ser feito para deter a catástrofe iminente. O que exatamente se deve fazer importa menos do que boas intenções e alguma atitude.

A série beneficia-se de um elenco alinhado e afiado, que dá contornos palpáveis às turbulências que profetiza (em especial, o casal formado por Rory Kinnear e T'Nia Miller encarna a impotência e a humilhação de quem literalmente da noite para o dia perde tudo em uma crise bancária).

A família Lyons, centro do enredo, é diversa e desigual como costumam ser grupos familiares em sociedades ocidentais seculares. Mas a democracia liberal que oferecia prosperidade e autonomia tanto ao funcionário público gay que se envolve com um imigrante ilegal, quanto à adolescente que implanta gadgets no próprio corpo para ser “trans-humana”, está gradualmente se desfazendo, em um enredo já desenhado por cientistas políticos contemporâneos como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, de "Como as Democracias Morrem".

Em paralelo aos dramas domésticos dos Lyons, vemos a ascensão política de Vivienne Rook, representação genérica de liderança populista defendida com vigor e humor por Emma Thompson.

Na aparência tão primitiva quanto seus presumíveis modelos reais —Trump, Orbán, Salvini, talvez até Bolsonaro, na hipótese de os roteiristas olharem para o hemisfério sul—, Vivienne na verdade é toda cálculo e dissimulação, uma mulher sofisticada que se passa por tosca para conquistar a plebe.

A ilusão de que os populistas do século 21 possam ser desmascarados —e de que seus eleitores sejam gente simplória como Rosie (Ruth Madeley), membro mais desprovido de brilho da família Lyons— conduz a história para a seara estéril das teorias da conspiração.

"Years and Years" vai até bem quando fantasia um futuro distópico. É quando tenta oferecer esperança que a série malogra: não há como engolir o kitsch da redenção geral de seu epílogo.

Mal comparando, a minissérie é a Greta Thunberg da ficção televisiva. Tal como a adolescente sueca que aponta com estridência para os perigos das mudanças climáticas, "Years and Years" denuncia problemas sérios. Mas para um traçar um diagnóstico mais aprofundado, e sobretudo para buscar soluções, é melhor consultar um adulto.

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