Aos 80, Antonio Pitanga enfrenta vilarejo racista em alegoria sobre o Brasil

Ator regride a estado primitivo em 'Casa de Antiguidades', longa de estreia de cineasta premiado em Cannes

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 Antonio Pitanga em cena do longa 'Casa de Antiguidades', de João Paulo Miranda

Antonio Pitanga em cena do longa 'Casa de Antiguidades', de João Paulo Miranda Carlos Eduardo Carvalho/Divulgação

Treze Tílias (SC)

"Os europeus falam que meus filmes mexem com magia negra", conta o cineasta João Paulo Miranda, nascido em Porto Feliz, no interior paulista, e hoje radicado na França. O diretor tímido acabara de rodar o último plano de "Casa de Antiguidades", seu primeiro longa, com roteiro desenvolvido numa residência do Festival de Cannes e estreia prevista para o ano que vem.

Os críticos do velho continente têm certa razão no diagnóstico. "A Moça que Dançou com o Diabo", curta que rendeu a Miranda o prêmio especial do júri na mostra francesa há três anos, retrata uma adolescente evangélica que se transfigura em uma língua de fogo quando enfim cede à libido.

Desta vez, é Antonio Pitanga que, aos 80, entra no universo fantástico do diretor. Ele interpreta Cristovam no filme, operário de uma fábrica de laticínios transferido para uma cidadezinha fictícia de colonização austríaca do sul do país.

Seus novos colegas são louros, de olhos claros, e caçoam dele em alemão. As paredes do auditório da fábrica reproduzem uma paisagem dos Alpes que poderia ter servido de cenário para "A Noviça Rebelde".

Desde o início deslocado —um dos poucos negros em meio aos operários brancos, sua primeira fala em cena é "fale português!"—, Cristovam descobre na casa abandonada do título um refúgio da comunidade local. Ao passear por seus corredores escuros e vasculhar seus móveis, cobertos de poeira, encontra indícios de uma vida anterior que acredita ter sido sua.

O principal deles é uma veste típica das cavalhadas, torneio folclórico em que batalham cavaleiros ricamente trajados. A cada peça de roupa que Cristovam adota no decorrer do filme —as botas, o uniforme preto com franjas, o cajado—, caminha mais e mais rumo a um estado animalesco, e inicia uma guerra contra os demais moradores da cidade.

A metamorfose é completa com uma máscara de papel machê em forma de boi, trazida pela produção de Pirenópolis, em Goiás, onde ainda é forte a tradição das cavalhadas.

"Cristovam é o Brasil, tentando se encontrar nesse território continental", resume Pitanga. "Você pergunta a um maranhense quem ele é, e ele fala como um cara no Rio de Janeiro, se veste como as pessoas de São Paulo. Ele perde as referências dentro de casa, é um estrangeiro no próprio país. Para uma pessoa que tem poucas informações, que bicho esse cara pode se transformar?"

O ator calcula que "Casa de Antiguidades" seja seu primeiro papel-título em um longa de ficção em quase quatro décadas. Comparando Miranda à Glauber Rocha, com quem realizou clássicos como "Barravento" e "Idade da Terra", ele enxerga em "Casa de Antiguidades" uma alegoria sobre o racismo.

"Na Bahia, 80% da população é negra [e parda]. E cadê governador negro, prefeito, bancada? Alguma coisa acontece que nós vamos aceitando, anestesiados", diz. "Cristovam é como tantos outros personagens no Brasil. Esse grito que ele rompe individualmente é parte de um processo maior."

Questionado se essa mesma alegoria não pode ser encarada como discriminatória, uma vez que é justamente o seu personagem, um negro, que é bestializado, Pitanga sorri. Diz que o estado primal a que Cristovam retorna é sobretudo mitológico. "Na Índia a vaca é um animal?", retruca, referindo-se à posição sagrada que ela ocupa no hinduísmo. "Esse filme vai ser entendido maravilhosamente bem lá."

A associação que Pitanga traça entre a narrativa de Cristovam e religião não é à toa. A maneira como Miranda descreve seus filmes em muitos momentos beira o mítico. "Procuro pôr na tela coisas que os espectadores acreditam estar vendo, mas não estão ali literalmente", descreve. "Você pressente que há algo ali."

Daí também vem a importância que ele dá ao som, uma característica que compartilha com o cineasta Kleber Mendonça Filho, de "Bacurau".

Miranda explica que, em "Casa de Antiguidades", usou microfones de alta frequência, que buscam traduzir para o ouvido humano sons audíveis apenas por animais. "Não gosto quando o som casa com a imagem", diz —mesmo que, desta vez, tenha ao seu lado um diretor de fotografia conhecido, Benjamín Echazarreta, do vencedor do Oscar de filme estrangeiro "Uma Mulher Fantástica".

O elemento faz parte da sua proposta de um "cinema caipira", que desenvolve desde os curtas da adolescência em Rio Claro, a cerca de duas horas de distância de São Paulo.

Miranda define o estilo como o encontro entre a vivência do interior com o fantástico.

"O que Guimarães Rosa fez na literatura eu quero fazer no cinema. Penso nos meus personagens como épicos", diz o cineasta. "Às vezes, isso significa ir além das aparências e remontar a uma involução, a anseios que não são racionais. É pensar pelo estômago."

Apesar da predileção pelo fantástico, Miranda não vê seus filmes como parte da nova safra do terror brasileiro. Afirma que não se interesse pela produção de gênero, ao contrário de Marco Dutra e Juliana Rojas, que em "As Boas Maneiras" apresentam um lobisomem paulistano, ou Gabriela Amaral Almeida, que em "O Animal Cordial" também acompanha a regressão do protagonista a um estado de violência primitiva.

Como eles, no entanto, o longa de estreia de Miranda também encontra nas metáforas uma maneira de abordar problemas reais do país para além do racismo.

Afinal, diz o diretor, levou sua equipe para um reduto bolsonarista —a cidade catarinense de Treze Tílias, que serviu de base para as filmagens, registrou no segundo turno mais de 3.500 votos a favor do candidato do PSL, contra cerca de 900 para Fernando Haddad (PT).

Um pouco dessa polarização aparece em cena. O número 17 da sigla do presidente, por exemplo, é pichado ao lado de dizeres racistas no casarão vazio que Cristovam invade. A bandeira do movimento separatista O Sul É o Meu País, formada por Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, é acrescida do estado de São Paulo —pedido pessoal de Miranda, segundo a diretora de arte Isabelle Bittencourt.

"O filme tem que trazer coisas que provocam, não é entretenimento", diz Miranda.

A jornalista viajou a convite da produção

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