Descrição de chapéu Cinema

Filme sobre festa catastrófica demonstra facilidade da barbárie, dizem psicanalistas

'Clímax', de Gaspar Noé, foi debatido em evento nesta terça (10)

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Para dissolver o verniz de civilidade que embasa as relações sociais, não é preciso muito. Bastam situações-limite —momentos de desamparo, angústia e caos social— para trazer à tona o lado primitivo do ser humano, capaz de atos de barbárie e perversidade. Este foi o consenso de debate realizado ontem (10) pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pelo MIS, com apoio da Folha.

O mote para discutir a linha tênue entre razão e desrazão foi o filme “Clímax”, do diretor argentino Gaspar Noé, exibido no evento. Lançado no ano passado, o longa mostra a festa de um grupo de dançarinos jovens em uma escola abandonada no interior da França. 

 

Isolados do mundo, cercados por neve e sem celulares à mão —o filme se passa em meados dos anos 1990—, eles dão uma festa para comemorar a conclusão de uma coreografia. Conforme a noite cai, no entanto, surgem suspeitas de que a sangria servida foi batizada com ácido lisérgico.

 

Dentro de poucas horas, a paranoia domina o grupo: a sincronia da dança se desfaz num pandemônio, as tensões e ressentimentos se materializam em violência real e a música eletrônica dá lugar a gritos. O saldo final inclui uma orgia, mortes acide ntais e provocadas, incesto e situações escatológicas.

Na interpretação do psicanalista Alan Victor Meyer, a presença da droga não é o que está em questão no filme. “A droga é um detonador, uma coisa que provoca essa mutação de uma festa fantasiosa num inferno.” São os momentos de grande angústia, diz, que suspendem o ego e transportam as pessoas para a ignorância violenta. 

Meyer pontuou que, na medida em que a sociedade abandonou a religião e a tradição como forças estabilizadoras, o desconforto causado pela necessidade constante de fazer escolhas —a transferência de responsabilidades de Deus para o indivíduo— aumentou. 

“Quando você vivia inserido em um mundo de fé e crença, você era muito bem instalado no mundo. Hoje as coisas estão em aberto”, afirmou. “Não saberíamos mais viver nesse mundo ordenado de cima para baixo. Por outro lado, isso cria uma grande insegurança. Há todo um movimento por uma âncora, por criar um ponto de inserção no mundo.” 

 Ele comparou a situação do filme à Alemanha devastada pela Primeira Guerra Mundial, com a economia quebrada e a população mergulhada em pobreza e fome —estado ávido pela volta da ordem e, portanto, propício para a ascensão de lideranças fascistas.

Para Meyer, o filme também remete à noção de gozo teorizada pelo psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981). Ela teria mais a ver com o desejo por uma condição de transcendência absoluta, análoga à morte, do que com o prazer carnal. “Nossa realidade cultural, civilizada, põe limites a esse processo. Na medida em que esses limites são perdidos, a coisa caminha para a destruição.”

Presente no debate, o repórter especial da Folha Ivan Finotti descreveu as experiências com o uso de LSD que teve na faculdade. Numa delas, em uma viagem para Ilha Grande (RJ), comparou o efeito no seu corpo a um computador em reset.

“Eu entrei em mim mesmo, nos meus órgãos, nas moléculas, nos átomos. Quando voltei, talvez 15 minutos depois, eu não tinha noção da realidade.” Isso mostra, comentou Alan Meyer, que a realidade é uma construção e pode ser perdida a qualquer momento.  

 

Finotti situou “Clímax”, que foi aplaudido no Festival de Cannes, como a retomada da relevância de Gaspar Noé: os filmes anteriores do diretor vinham em ordem decrescente de público e bilheteria. “É curioso que o filme tenha caído no gosto do público, apesar da gritaria. O filme dura apenas uma hora e meia, mas parece que tem muito mais. Por quê?”

A resposta pode estar nas referências inclusas no filme pelo próprio Noé, que vão de Fritz Lang a “Salò - 120 dias de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini. Mas a estética da desolação, lembrou Finotti, é quase onipresente na cultura —desde obras como “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, aos filmes de zumbis ou pós-apocalípticos, como Mad Max.

Perguntada por uma pessoa na plateia se, afinal, somos nosso melhor lado ou o pior, a psicanalista Luciana Saddi, que mediou o debate, afirmou que somos os dois. A personalidade humana não é algo estático e há uma ligação íntima entre a psiquê individual e os laços coletivos. 

“O ‘eu’ é uma casquinha, a parte mais morta da gente. Nós nos surpreendemos com nós mesmos, para o bem e para o mal.”

O filme está disponível no catálogo da Netflix.

  

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.