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Livro rompe com políticas de corpo e sexualidade

Paul B. Preciado narra experiências pessoais e discute construção da masculinidade moderna em obra inédita no Brasil

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O que importa aqui é o que se chama hoje de “resistência micropolítica”, o que o filósofo espanhol Paul B. Preciado diz sobre as máquinas de produção de verdade, como um jornal: “A mim o que interessa não é descobrir a verdade, mas sim inventá-la, produzi-la. As práticas filosóficas são práticas de invenção da verdade, como o são as práticas sociais em seu conjunto. A universidade é uma máquina de produção de verdade, o museu é outra, a televisão é outra”. 

Como essas máquinas foram inventadas por nós, são nossas, afirma, é preciso interferir nelas, para que sejam tecnologias abertas, compartilháveis, plurais: “copyleft”, por oposição ao “copyright” dos direitos autorais. “Que elas não sejam capturadas pela elite sexual [...] pelos neoliberalismos.”

Formado na tradição da filosofia foucauldiana, Preciado, 49, discute a normatividade nas “sociedades disciplinares”, nas “sociedades de controle” de Deleuze e Guattari. 

Estuda os movimentos sociais de resistência à normalização sexual, política, colonial ou qualquer outra: o movimento queer, por exemplo, que chama de “pós-gay”, surgido nos anos 1990 nos EUA, e diz que é preciso, a partir deles, reescrever a história da filosofia.

O termo “queer”, pejorativo em inglês (equivalente a “bicha”, “viado” e afins), foi reapropriado pela teoria queer como política de identidade e lugar de denúncia dos processos de exclusão dos que resistem à heteronormatividade, observa Preciado. É o movimento que aponta também os erros do feminismo dos anos 1980, tido como homofóbico e colonial.

O nome de Paul Preciado não é novidade no ambiente acadêmico brasileiro. Vários estudos já abordam seu pensamento revolucionário nos debates sobre igualdade e diferença. 

Seu primeiro livro, “Manifesto Contrassexual” (publicado aqui pela N-1 Edições, 2014, ainda assinando como “Beatriz”), é reconhecido internacionalmente como referência-chave nos estudos de gênero. É autor também de “Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica” (N-1, 2018) e “Pornotopia”.

Detalhe do livro 'Manisfesto Contrassexual', Paul B. Preciado, pela N-1 Edições
Detalhe do livro 'Manisfesto Contrassexual', Paul B. Preciado, pela N-1 Edições - Divulgação

Seu livro mais recente (2018) é “Un Apartamento en Urano: Crónicas del Cruce” (“Um apartamento em Urano: crônicas de uma travessia”), coleção de artigos seus para o jornal francês Libération (2013-2018), ainda não traduzido no Brasil.

Que o título não engane: “uranistas” era o cognome dado ao “terceiro sexo” no século 19. 

Os artigos são uma espécie de diário que acompanha a decisão de Preciado de administrar em si mesmo pequenas doses de testosterona (desde 2004), de sua travessia do “corpo Beatriz” para o “corpo Paul”, para estudar a “construção” da masculinidade moderna. Define-se como uma “autocobaia”, que faz de sua subjetividade plataforma de transformação política.

Preciado poderia então ser chamado de transgênero e/ou homossexual, lésbica, etc., mas não será. Sua proposta é romper com políticas e nomenclaturas que enquadram o corpo e a sexualidade, que submetem as identidades a “noções médico-jurídicas” de regularização, de regulamentação entre sexo, sexualidade e reprodução. 

“A homossexualidade e a heterossexualidade não existem”, diz ele, “são ficções políticas.”

Quando escreveu os artigos de “Um Apartamento em Urano”, já estava afastado da Universidade Paris 8 e da Universidade de Nova York, onde lecionou filosofia. Achou que já tinha ensinado tudo o que sabia. 

Saiu viajando então por vários países, atravessando fronteiras, bem no momento da mudança de nome, mas ainda sem o novo passaporte como Paul B. Preciado —e, portanto, como um ser sem corpo, sem definição jurídica e política por nenhum “Estado-nação”. Vivenciou a opressão (“extremamente violenta”) desde esse lugar de corpo clandestino.

“Percebo então que minha condição trans é uma nova forma de uranismo. Não tenho mais necessidade [...] de afirmar que sou uma alma masculina encerrada em um corpo de mulher. Não tenho alma e não tenho corpo”, conclui, em um dos artigos do livro, este pensador profundo, bonito, genial. Atualmente, Preciado é pesquisador residente da Fundação Luma, em Arles, na França.
 

 

Un Apartamento en Urano: Crónicas del Cruce

  • Preço US$ 27 ou cerca de R$ 113. 320 págs.
  • Autor Paul B. Preciado
  • Editora Editorial Anagrama (Espanha)

Marilene Felinto é escritora e tradutora, escreve na Folha nos dois últimos domingos do mês (amarilenefelinto@gmail.com)

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