"A onda anda/ aonde anda/ a onda?". Ativados pela sagacidade do músico e professor José Miguel Wisnik, esses versos interrogativos de Manuel Bandeira dão ensejo para outra questão de impossível resposta: "A gente não sabe o lugar certo/ De colocar o desejo". A dúvida, descrita por Caetano Veloso em "Pecado Original", é lembrada por Wisnik numa das mais ricas passagens do documentário de Paula Trabulsi.
Realizado como uma etapa da pesquisa preparatória para um longa-metragem previsto para 2020, "O Incerto Lugar do Desejo" mescla depoimentos de intelectuais e artistas com encenações e leituras feitas por Maria Fernanda Cândido em um inverno em Paris. Ela é Ana Thereza, uma mulher casada que, durante uma temporada de pós-doutorado na França, apaixona-se.
Colocações como as do filósofo Peter Pal Pelbart, do especialista em psicomotricidade André Trindade e da psicoterapeuta Lúcia Rosenberg de fato seduzem o espectador, que se torna um "desejante insaciável".
O filme pouco revela do enredo e da protagonista, nascida nas páginas da escritora Maria Cecília de Azevedo.
O documentário instala-se, assim, numa prolongada hesitação, tratada a partir de diversas perspectivas —a filosofia, a psicanálise, a literatura, a arte, o corpo. O que constitui traição? Há motivo para sentir culpa? Como viver sem desejo? Wisnik lembra, inclusive, que até as notas musicais se desejam, dentro de sequências harmônicas.
É bem costurado o diálogo entre especialistas, ouvidos e vistos por uma câmera evidentemente seduzida e sedutora. Causa, porém, espanto, sobretudo no início, a prevalência de especialistas homens num filme feito por uma cineasta mulher, inspirada no romance de uma escritora e tratando de uma protagonista feminina. A desproporção pouco a pouco vai sendo corrigida e vozes femininas ganham mais espaço na segunda metade, com os testemunhos da consultora Costanza Pascolato e das artistas Nina Pandolfo e Marilu Beer
Ao final do visionamento, resta uma sensação de insatisfação, como se tudo o que acabamos de ver fosse um preâmbulo para a passagem ao ato, para a realização, de fato, do desejo, sempre adiado. Haveria como ser de outra maneira? Talvez sim. Mas se alguma coisa aprendemos em pouco mais de 70 minutos, é que o desejo pertence à ordem do indomável, do incontrolável, do fugidio. E apenas os mais corajosos —ou as mais corajosas, como Ana Thereza— conseguem encará-lo de frente.
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