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Paulo Coelho: Vou perder leitores, mas criticar Bolsonaro é compromisso histórico

O escritor comentou atual momento do país, sua desilusão com o comunismo e a relação com os críticos

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Ricardo Senra Elisa Kriezis
Genebra | BBC News Brasil

Tudo em torno de Paulo Coelho é superlativo. Do banheiro para visitas decorado com um quadro assinado por Andy Warhol ao elevador de vidro que vai da sala de estar ao enorme terraço sob os Alpes suíços.

Dos mais de 325 milhões de livros vendidos e 1 bilhão de leitores em 150 países, ao recorde de escritor vivo mais traduzido do mundo e quase 50 milhões de seguidores em redes sociais.

Da tortura a que foi submetido durante três meses, em 1974, à forma contundente como critica o governo brasileiro, em 2019.

"O esfacelamento daquilo que o nosso país representava."

"Um delírio."

"Um Brasil totalmente polarizado" que está "caminhando para o mesmo clima de terror" da ditadura.

Em seu apartamento, em Genebra, o escritor falou o que pensa sobre Jair Bolsonaro e disse estar cumprindo um "compromisso histórico".

"O compromisso histórico é não ficar calado. Eu tenho que falar. Vou perder leitores? Vou. Tenho perdido? Devo estar perdendo? Não sei. Eu não fico contabilizando", diz, enquanto a mulher Christina Oiticica, que acompanha a entrevista, assente com um leve gesto de aprovação.

Em livros como "Hippie" (2018), o mais recente, ou "O Aleph", de 2010, Paulo Coelho alerta que o passado pode destruir o presente. Mas, nesta entrevista, ele decide lembrar com detalhes os meses em que foi espancado, teve os genitais presos a eletrodos e foi trancafiado nu, com um capuz, numa sala gelada e escura por agentes da ditadura.

"Se o passado se repete no presente, já não é mais passado, é presente."

Em mais de uma hora de conversa, o escritor também fala sobre o momento em que rompeu com o PT ("estou fora"), a desilusão com o comunismo ("tudo cinza e triste"), a experiência no caminho de Santiago de Compostela ("a jornada é o que conta, e isso vale para política e religião") e a relação com os críticos ("sobrevivi a todos").

Também dá sua opinião sobre figuras contemporâneas como os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), o papa Francisco, o guru bolsonarista Olavo de Carvalho, o youtuber Felipe Neto e o pintor Romero Britto. Também fala sobre Jesus, "mais politicamente incorreto, impossível".

Você é essa figura global. Estamos em Genebra, você está no Guinness Book como o autor vivo mais traduzido no mundo e conversa com gente de toda parte. O que as pessoas têm perguntado sobre o Brasil ultimamente? As pessoas ficam muito constrangidas em perguntar sobre o Brasil. Elas não perguntam. Eu tenho que dar uma entrada para as pessoas perguntarem. Eles vêm e dizem: "Ah, pois é, você viu que ele ofendeu a primeira-dama francesa". Aí eu tenho que falar alguma coisa. Mas eu procuro evitar a conversa Brasil porque eu não posso no momento falar bem do meu país e falar mal é muito chato.

Você tem, por outro lado, se colocado pelo Twitter. Como você vê este momento no Brasil? Eu tenho 72 anos e nunca vi nada igual. Eu já vivi ditadura, democracia, muitas fases do Brasil, mas nunca vi o que está acontecendo agora. É um delírio. Necessitava [Howard Phillips] Lovecraft, um escritor de ficção científica, para descrever o Brasil. Fico muito triste com o que está acontecendo.

Uma coisa é certa: não se morre de tédio com a política brasileira, porque todo dia tem uma coisa nova. Por outro lado, francamente, o que é isso? Que é isso? O que o presidente brasileiro está fazendo para colocar o Brasil em tanta saia justa?

Você fala de alguma situação específica? Tudo, tudo, tudo. Vai desde o aquecimento global às queimadas na Amazônia. Parece que o Brasil virou um estado de negação. As pessoas negam a realidade. "Ah, vou me fechar aqui e não quero ver o que está acontecendo." Isso é muito triste. Veja, você tem um chanceler, Ernesto Araújo, que é um cara completamente despreparado. Não tem maturidade, não tem experiência, não tem nada que justifique a posição que ocupa. E o cara diz qualquer coisa. "Ah, eu fui à Itália, estava frio, então não tem aquecimento global." Meu amigo, um dos sintomas do aquecimento global é o frio.

Você tem um presidente que, no fundo, eu nem sei se está muito contente de ter sido eleito. É muito confortável estar na oposição. O Brasil está assistindo horrorizado ao esfacelamento daquilo que nosso país representava. Ou seja, uma luz em um mundo que vivia em trevas.

Você fez críticas ao presidente, ao chanceler. Você se preocupa de alguma maneira que essas críticas desagradem a parte dos seus leitores? Mas óbvio. Não, não. Preocupar é uma palavra muito forte. A essa altura, eu tenho um compromisso histórico e o compromisso histórico é não ficar calado. Eu tenho que falar. Vou perder leitores? Vou. Tenho perdido? Devo estar perdendo? Não sei. Eu não fico contabilizando isso. No Brasil. Mas, fora do Brasil, eu não acredito. Acho que todo mundo está olhando o Brasil neste momento com muita suspeita.

Um assunto delicado, mas trazido por você mesmo recentemente frente a declarações do presidente Bolsonaro. Pode contar o que aconteceu no dia 28 de maio de 1974 e nos dias que se seguiram? Bom, durante o governo militar eu era um louco. Nada mais aceitável do que ser um louco com 26 anos. Você tem que passar por um período de loucura para não ficar fazendo loucura depois. Então era tudo: sexo, drogas, rock'n roll. Era o hipismo. E os militares achavam, como acham hoje em dia, porque o Brasil vive um momento também muito conservador, que tinham que entender tudo.

Aí eles não entendiam as minhas músicas. Eles achavam: "Bom, se está fazendo sucesso, se está todo mundo cantando, alguma coisa está errada". Quem são esses caras aí? Raul Seixas e Paulo Coelho. Alguma coisa está errada porque a gente não entende o que eles estão falando. Então, chamaram o Raul para depor. O Raul era o cantor. Como diz o Elton John, "Don't Shoot Me, I'm Only the Piano Player" [não atire em mim, eu sou apenas o pianista]. Mas a eminência parda, o cara perigoso, o ideólogo era o letrista. Então eles me prenderam. Agora, tem que justificar uma prisão. Não acharam nada.

Quando eu estava preso oficialmente, fichado, com impressão digital, meus pais conseguiram mandar um advogado. Aí eu falei para o meu advogado "olha, não aconteceu nada, está tudo bem". Aí, me soltaram no mesmo dia e me sequestraram em frente ao aterro do Flamengo. Me arrancaram do táxi, me jogaram na grama, me apontaram a arma. Eu olhei para aquele hotel e disse: "Putz, eu tenho 26 anos, vou morrer olhando o hotel Glória? Isso não é justo. Eu não estou pronto para morrer". Mas aí há um bloqueio, há um mecanismo de defesa que você simplesmente se entrega ao seu destino. Acho que fiquei uns 20 ou 30 minutos [pensando]: "Ah, tá. Já que eu vou morrer, eu vou morrer".

Aí, em um dado momento, quando cheguei ao centro de tortura, que só fui descobrir muito tempo depois que era na rua Barão de Mesquita, voltou o instinto de sobrevivência. Mas até lá eu estava entregue. Aí eu fui torturado, apanhei, essas coisas todas.

Qual era a sua situação nesse momento? Eu estava de capuz, em uma cela. Não via ninguém. Apanhando, óbvio. Mas apanhar não é uma coisa séria. Mas quando eu olhei, debaixo do capuz, os caras tinham posto a máquina de choque. Eu já tinha levado choque feito doido, mas choque de doido não dói [aos 20 anos, Paulo Coelho foi internado pela primeira vez pelos pais em um manicômio]. Agora, aquele choque ali era para machucar, tá? Eu olhei assim e me assustei muito. Aí eu disse: "Ah, deixa que eu me torturo". Lembrei da casa de saúde. Aí comecei a me lanhar. Enfiei as unhas no corpo e comecei a me arrebentar. E começou a sair sangue.

Os caras disseram: "É maluco". Aí a tortura diminuiu e no dia seguinte voltou. Eles queriam saber como estava a guerrilha na Bahia. Porra, meu amigo. Eu confesso! Como está a guerrilha? Eu assino aqui. O que você quer é que aquilo pare. Agora, a pior tortura não é aquela que agride fisicamente. A pior tortura é a psicológica.

Então, eles me botaram numa coisa chamada geladeira. É uma caixa, de 3 m por 3 m, estou chutando, a porta hermeticamente fechada. Um ar condicionado. Você está nu. Eu estava nu o tempo todo. Só com capuz. Tortura é uma coisa que é uma violência total. Essa geladeira é uma coisa que eles não me tocavam. Me fechavam lá dentro, botavam aquele ar condicionado tremendamente frio, e era tudo escuro, pintado de preto. Você não tem mais nenhuma sensação.

Noção de tempo? Noção de tempo, distância, nada, você só tem um frio congelante. Ali eu pirei. Acho que o pior momento da tortura foi o tempo que eu passei na geladeira. Porque eu pensei: "Estou enlouquecendo, estou enlouquecendo". Até então eu era um maluco beleza. Um cara que fez minhas loucuras, da minha juventude. Mas ali eu estava virando louco mesmo. Estava perdendo a minha capacidade de pensar. Não sabia se era reversível ou não.

Aí foi isso. Quando eu saí da prisão, saí como entrei. Sem explicação. Nunca fui processado, nunca fui ao Tribunal Militar. Nada. Fui preso em maio, fiquei preso até junho. Você perde a noção de data.

Mas aquele medo fica. Aquele terror fica.

Li histórias de que ser preso acabava virando um estigma, porque as pessoas ficam com medo de se aproximar ou se associar. Todo mundo. O meu próprio parceiro na época, o Raul, não deu mais notícias. Não atendeu meus telefonemas. Os meus amigos sumiram. Porque ser visto com um preso... E isso existe até hoje. Se esse cara foi preso... Alguma coisa tem de errado, então é melhor não ser visto com ele, podem estar fotografando.

O Brasil vivia um clima de terror. Para o qual está se encaminhando agora. O Brasil está totalmente polarizado e eu acho que as coisas infelizmente estão caminhando para o mesmo clima de terror. Você já não diz o que pensa. Nem na família. Não é porque vão prender, torturar ou bater. É porque as pessoas perderam completamente a capacidade de diálogo. Ou você é a favor, ou é contra. Não existe conversa. E a mesma coisa naquela época.

No seu livro 'Hippie', você diz que a gente precisa fazer as pazes com o passado para não destruir o presente. Em 'O Aleph', você diz que o passado é um bom lugar a se visitar, mas não um bom lugar para se viver. Em 2013, você tuitou "visite a sua alma, não visite o seu passado". Por que agora é importante trazer esse passado? Porque é um presente. Não é um passado. Eu, por exemplo, se fosse visitar meu passado, não escrevia mais. Escrevi durante tanto tempo, escrevi tantos livros, graças a Deus, sucesso no mundo inteiro. Estou com 325 milhões de livros vendidos até junho. Isso significa, tomando uma média de três leitores por livro, quase 1 bilhão de pessoas lendo os meus livros. Então, se vou visitar isso, eu não escrevo mais. Primeiro, fico paralisado pelo medo desses leitores, do que eles querem ou deixam de querer. Pô, o meu prazer é escrever. É disso que eu gosto e é isso que justifica a minha existência.

Caramba, eu poderia estar vivendo só de música e de memórias. Aquele cara chato que chega no bar "ah, eu fiz uma música. "Gita" [Paulo Coelho cantarola]. "Eu sou, a luz das estrelas." E o cara: "Ah, já sei qual é, já ouvi". Viver no passado é um perigo, é mortal.

Agora, se o passado se repete no presente, já não é mais passado, é presente.

Ainda sobre esse passado que reaparece, a censura é outro tema que voltou à tona com o episódio da Bienal do Livro. E você citou no Twitter seu livro '11 Minutos', que fala sobre sadomasoquismo, prostituição, e estava ali exposto sem ser recolhido. É, eu sugeri que censurassem meu livro porque é um livro sobre prostituição. Curiosamente é o meu segundo livro mais vendido.

Os caras não têm muita noção de nada. Eles vão pelos trending topics do Twitter para ver o que está acontecendo. Eu disse ao meu editor lá no Brasil: "Põe aí bem visível, quero ver se eles vão pegar. Se pegarem, eu vou criar um problema mundial". Não pegaram.

Acredite se quiser, mesmo durante a ditadura, com todas essas músicas, eu sendo considerado um subversivo potencial, porque eles não tinham nada para provar contra mim, eu só tive uma música censurada. Que se chamava "Óculos Escuros". Eu troquei o título e botei um que não tem nada a ver que diz "Como Vovó Já Dizia", mandei para a censura e passou. Não existia a menor lógica na repressão.

O Felipe Neto fez aquela ação de comprar todos os livros e distribuí-los. Você chegou a elogiar inclusive. Não só elogiei, senti uma certa inveja positiva. Disse: "Porra, o cara teve essa ideia e eu não tive, porra, eu queria ter tido essa ideia". Mas aí ele começou a ser ameaçado e eu resolvi me posicionar para que a pessoa seja defendida. Na época da repressão, digo no governo militar, quando as pessoas eram presas, elas eram agarradas na rua, sei lá, em qualquer lugar, e elas tinham que gritar o nome para que todo mundo soubesse que a pessoa estava sendo presa. Porque uma vez que as pessoas sabem, isso já é um escudo de proteção. A mesma coisa valia para o Felipe Neto. Não vamos deixar que as coisas sejam assim, não. Além do mais, o Twitter é uma falsa caixa de repercussão porque existem as milícias virtuais e você nunca sabe o que é real. Eu posto uma coisa e eu não leio comentário porque a maioria é robô.

Ainda sobre o Twitter, você postou uma frase de Bolsonaro dizendo várias vezes que é ele quem manda. 'Sou eu quem manda, sou eu quem manda'. É, era para o Moro! 

Exato. Você pergunta se Moro entendeu bem. Qual era o recado? O Bolsonaro é quem manda! O Bolsonaro tem isso, ele é um capitão, tem educação militar e tem esse senso de hierarquia. Você, se fizer alguma coisa errada, quem manda sou eu. Você vê que há um conflito entre Moro e Bolsonaro desde que Moro entrou para ser ministro da Justiça, contra o conselho de várias pessoas. Mas quem manda é Bolsonaro.

E qual é o seu conselho a Moro? Eu não tenho conselho ao Moro. O Moro não faz parte do meu universo. Moro é uma pessoa que eu não entendo muito bem, sabe? Eu vi agora os desmandos da "Vaza Jato". Esse sim que é um cara corajoso. O...

Glenn Greenwald? Esse cara é um ícone para mim. Ele está lá, está falando tudo aquilo e desmascarando uma coisa que você diz "ah, vamos fazer isso porque está certo". Voltando a Maquiavel: "Ah, os fins justificam os meios". Não justificam.

Vamos usar um exemplo concreto. Santiago de Compostela, eu fiz em 1986. Eu demorei 56 dias, a média é 30. Eu ficava o tempo todo no começo querendo chegar a Santiago de Compostela. Quando cheguei, foi um anticlímax. Acabou. E agora?

A jornada é o que conta. É o que é importante, né? E isso vale para política, para religião, vale para tudo. É o processo que vai deixar você em paz com a vida ou de mal com a vida e não aonde você vai chegar. Porque nós vamos chegar todos a um mesmo lugar chamado morte.

Outro dia você disse que 'antigamente as paredes tinham ouvidos e que agora os ouvidos têm paredes'. Você estava falando sobre polarização, fake news... É isso? Acho que hoje em dia se criou um universo completamente artificial e existe uma mudança irreversível. Não adianta dizer que a comunidade social está criando isso ou aquilo. Mas hoje em dia você consegue se aproximar da sua tribo, seja ela de luz ou de trevas, e entende que não está sozinho. Quando você entende isso, aquilo cria uma barreira em torno. E acabou. Você tem lá seus dez amigos que compartilham da ideia de que a Terra é plana, que os ETs estão lá na Área 51 dos Estados Unidos e pronto.

A gente está emburrecendo por isso? Eu não sei se a gente está emburrecendo, eu não sei se a gente sempre foi burro, eu não sei se eu sempre acreditei em coisas que queria acreditar. Óbvio, não vou acreditar que a Terra é plana. Mas eu acredito em extraterrestres. E muita gente não acredita. Eu acredito em Deus. E tem gente que pensa que Deus não existe. Então, você é você e a maneira como vê o mundo.

Eu, como todas as pessoas da minha geração, namorei o comunismo. Eu queria visitar os países comunistas. E já era muito difícil. Conseguimos, eu atravessei o Muro de Berlim, e o cara me perguntou: "Quanto dinheiro você tem?". Digo: "Tenho em torno de US$ 4.000", vamos dizer. Aí o cara diz: "Não, exatamente, os trocados". Eu disse: "Está bom". Sentei com minha mulher e começamos a contar as moedas. E passavam outras pessoas que moravam da DDR [nome oficial da Alemanha Oriental]. E eu comecei a ver a humilhação que eram as pessoas que chegavam.

Fomos para a DDR, para a República Tcheca, Romênia, Hungria. E era tudo cinza. Tudo triste. As pessoas eram infelizes. Eu disse, porra, é isso que eu estou defendendo? Nem defendendo, eu não era um cara atuante. Era um simpatizante. Eu disse: "Não, isso não está com nada". É muita repressão, estou fora.

Em 2016, em abril, você disse em um texto: 'Fui petista, fiz campanha, me decepcionei, resisti o quanto pude às constantes desilusões, incompetência etc. Mas chegou um dia em que eu disse basta'. E aí, há pouco tempo, você disse que pode amar o seu país, mas você deve... Você pode amar o seu país e desprezar o seu governo. Eu flertei com o PT. Mais do que flertei. Eu fiz campanha, eu fui apoiar na Olimpíada, apoiei a Copa do Mundo. E aí eu comecei a ver que era uma coisa que não estava levando a lugar nenhum. Não digo que os resultados dos governos Lula não foram bons, mas da Dilma já não foi. Já é uma coisa meio falsa.

Não sei. Aí eu disse: "Ah, não, estou fora do PT."

Você tem essa frase de você deve amar seu país, mas desprezar seu governo. Você é um cara desiludido com a política? Boa pergunta. Eu não sei responder. Eu acho que o mundo vem do seu momento auge, a Acrópole, Atenas, de onde vem a palavra "política", onde as pessoas realmente discutiam. Aí depois se criou uma casta e depois essa casta se julgou no dever de ditar o que a gente pensa. "Ah, mas seria anarquia." Eu não acredito.

Acho que se todo homem tivesse o poder de interferir no seu país e no seu governo nós teríamos um Congresso, um Executivo, um Judiciário, que é um poder muito importante, mas nós teríamos uma voz popular muito importante. Então eu acho que infelizmente nós caminhamos para a consolidação dessa casta política. Acho que a política tem que passar por uma reforma muito grande.

Essa discussão sobre a desilusão com os políticos, a descrença com o político tradicional é algo que está em voga e, por exemplo, teria ajudado a eleger figuras como Donald Trump, nos Estados Unidos, ou, no Brasil, o João Doria, que vem do mercado, ou no Rio de Janeiro o Wilson Witzel, que é um juiz. Como vê esse fenômeno? Aí é que está. Quando não se oferecem alternativas concretas, você parte para coisas que terminam dando no Bolsonaro. O cara acredita que o nazismo é de esquerda, meu amigo. Os judeus ficaram chateadíssimos com esse comentário.

Você falou sobre uma tristeza sobre o Brasil de hoje, uma série de preocupações que você tem. Queria saber o que ainda lhe dá orgulho no Brasil. O povo. O povo. O povo. Eu espero que esse povo não seja contagiado com o que está acontecendo. Embora, no momento, você veja que as pessoas estão ficando muito radicais. Muito. O evangélico já não tolera o católico, o cara de esquerda não tolera o de direita, o de direita odeia todo mundo. Você vê nas biografias do Twitter. "Fulano de tal ferrenho anticomunista." De onde esse cara tirou que é anticomunista? O que ele acha? Que o Brasil vai ser de repente invadido por hordas de soviéticos que estavam ocultos na Amazônia, depois que queimarem sai aquele bando de soviéticos para atacar o Brasil, todos com aquela estrelinha vermelha? Comunismo não existe mais. Nunca existiu, existia um regime soviético horroroso.

Aí eu digo, que é isso, porque as pessoas falam isso? Ah, porque as pessoas precisam de uma bandeira para defender. O cara vai lá e tem a bandeira anticomunista. Podiam inventar uma coisa melhor, mais moderna, como antipoluição. Mas o cara é anticomunista porque sofreu ali uma lavagem mental. Esse anticomunismo é muito recente, é da eleição do Bolsonaro para cá. Todo mundo da direita virou anticomunista.

Na Academia Brasileira de Letras eu fui eleito na vaga de um ícone da direita, que era o Roberto Campos, que eu atacava enquanto estudante. E o Roberto Campos tem uma frase muito boa. Ele diz que "a violência da flecha dignifica o alvo". Então, quando [você] é atacado com muita violência, de alguma maneira aquele ataque dignifica. Ou mata ou faz viver, mas ao menos você é dignificado. Não há nada pior do que ignorar.

O termo guru já foi muito usado para descrever você e é algo que você rechaça. Hoje esse termo voltou à tona e vem sendo muito usado para descrever outro escritor, o Olavo de Carvalho. Queria saber se você já o leu e o que acha dele? Não, não li e não tenho opinião. Não é uma coisa que entra no meu universo.

E por que a ideia de guru incomoda? A mim? Porque guru é um cara que mostra o caminho. Eu sempre fui a favor de que cada um de nós saiba o caminho que deva seguir. A vida nos dá todas as ferramentas, faz a gente encontrar as pessoas certas, no momento certo, o problema é reconhecer.

Sobre religião e espiritualidade. Você é um cara que se reconciliou com o catolicismo depois de experimentar outras filosofias e religiões. Hoje, estima-se que na próxima década o Brasil deve se tornar um país de maioria evangélica, protestante. Eu acredito que sim.

Queria saber como vê esse fenômeno. Bom, cada um tem direito de escolher, não é? Eu acho que religião é uma coisa de foro íntimo. Sou católico, tenho uma grande admiração pelo protestantismo. Eu acho que cada um tem sua escolha, sobretudo nessa área. Essa coisa de "ah, paga dízimo". E daí, meu amigo? A pessoa paga dízimo, o cara que lê meu livro paga direito autoral, alguém paga a BBC.

O problema é a radicalização. O cara invadir uma bienal em nome dos costumes. Cristo era um cara mais politicamente incorreto, impossível. Vivia cercado de mulher. Bebia. O primeiro milagre dele, nas bodas de Caná, ele transforma água em vinho, não vinho em água. Se cercava dos piores elementos, do cobrador de impostos Mateus, dos pescadores. Amaldiçoava a elite da época. Por exemplo: ele passa por uma figueira, ele olha, a figueira não dá figo para ele porque não é época. Ele amaldiçoa a figueira. Então é um cara que eu adoro, porque é uma pessoa feito todos nós.

Agora, a leitura da Bíblia são outros 500. As pessoas leem o que elas querem. E isso está gerando um fanatismo. E o Brasil infelizmente pode caminhar para um conservadorismo cultural.

A gente está perto do Sínodo da Amazônia, essa grande reunião de bispos no Vaticano, e o Brasil vai acabar sendo assunto por lá. Lembro que você não gostava de Bento 16. Queria saber sua impressão sobre o papa Francisco. Muito boa. Muito boa. Eu estou pensando se vou ou não ao Vaticano agora, porque vai ser canonizada agora uma santa que me deu de comer chamada irmã Dulce. A primeira santa brasileira. Eu estava mendigando na Bahia, eu tinha fugido de casa e ela me deu de comer. Hoje em dia, graças a Deus, a gente ajuda os hospitais dela, a gente tem uma fundação que ajuda algumas coisas, entre as quais algumas unidades dos hospitais da irmã Dulce.

Penso se vou ou não, estou nessa fase de preguiça, para encontrar o papa. Porque eu já recebi sinais de que ele gostaria de encontrar comigo também.

Você o vê fazendo um trabalho interessante? Vejo um trabalho muito interessante. Que as pessoas atacam, mas as pessoas atacam tudo. Atacar é livre. Fazer o trabalho que é difícil.

Você é o único escritor que eu já vi na vida defendendo a pirataria dos próprios livros. Claro.

Por que? Eu defendo a pirataria porque tem gente que não tem dinheiro ou acesso à livraria. Agora mesmo a gente mandou contêineres de livros para a África. Na África, não existem muitas livrarias, mas existe o celular e as pessoas podem baixar. Então, baixa pirata.

E depois, ao contrário do que as pessoas pensam, o mundo não é ganancioso. As pessoas respeitam quando você é generoso. Eu respeito quando são generosos comigo. Então, não vivo na defensiva. Nem com direitos autorais, nem com relação a nada. Acredito na maldade e na bondade humana.

Como acha que você vai ser descrito no futuro nos livros de história e literatura? Que lugar você acha que vai ocupar lá para frente na nossa literatura? Não tenho a menor ideia e não é uma coisa que me preocupa.

Eu me lembro que no começo diziam que eu ia durar três anos, que era moda. Eu estou ocupado com o aqui e o agora. Uma coisa seja dita: eu, Paulo Coelho, sobrevivi a todos os meus críticos. Eles simplesmente sumiram, desapareceram. Mas eu continuei e continuei porque não tentei agradar. Eu nunca tentei agradar ao crítico. Eu sempre fui absolutamente consciente do que eu queria fazer e continuei fazendo e sobrevivi aos críticos.

Lembrei uma frase sua: você inclusive compara os críticos aos eunucos. Qual é a frase do harém? Crítico é que nem eunuco de harém. Vê fazer, sabe a melhor maneira de fazer, mas não pode fazer porque não tem material necessário. Então, o crítico é o cara que, coitado, não deu para nada e vai ser crítico.

A história está cheia de exemplos de gente que foi pisada. Isso vai desde Richard Wagner, o compositor, até o que se faz com o Romero Britto hoje em dia no Brasil. O Romero Britto é um fenômeno mundial e também não liga para crítica.

Se o meu trabalho vai ficar ou não vai ficar, eu espero que fique, óbvio. A literatura está passando por várias mudanças, então vamos ver.

Você é um cara que chora? Qual foi a última vez? Eu choro muito. Não me lembro a última vez, deve ter sido ontem, eu vi um documentário e chorei. Eu acho a lágrima um dom. Um dom. Ela expressa. Eu não choro de raiva, nunca, mas choro de emoção.

Eu nunca posso ter como garantido o que aconteceu comigo. Então tem que estar sempre reverenciando esse milagre. E reverenciar esse milagre é fazer alguma coisa seja por mim, seja por meu semelhante.

Quando eu doei meus livros, era na língua dos colonizadores. O francês e o inglês. Você começar a ver seus livros surgindo em línguas locais, suaíli, iorubá. Que prêmio maior existe para o escritor? Que seu trabalho viaje, que sua alma seja compreendida. No fundo, se escreve para isso.

Você também se emociona com música? Pensando no Paulo Coelho roqueiro, parceiro do Raul, compunha para Elis Regina, Rita Lee. A música ainda emociona ou o rock morreu? A música é sempre geracional. Eu escuto o que escutava quando tinha 26 anos. Eu não evoluí. Nem eu e nem ninguém. Você fica naquela fase e pronto e ouve aquilo várias vezes. Eu escuto o que escutava, desde Led Zeppelin, a Chitãozinho e Xororó, ou Raul Seixas ou Roberto Carlos. Antigos.

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