Descrição de chapéu The New York Times Televisão

Por que, mesmo após 25 anos, não conseguimos parar de assistir à série 'Friends'

A maior parte da TV parecia fácil porque mesmo quando os personagens sofriam estava na cara que não estavam em um filme; hoje a televisão é o cinema

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Wesley Morris
The New York Times

Era uma vez um tempo em que nos virávamos com menos televisão. Três emissoras abertas dominavam tudo (não era tanto o caso de passar de um canal para outro, mas de triangular entre eles). Tínhamos uma emissora pública local e os filmes antigos que um sinal de UHF conseguisse sintonizar. E hoje?

Hoje idealizamos nossa chamada era de ouro vista por cabo e movido à internet e reclamamos da amplitude galáctica da era do streaming. Alguém chegou a batizar essa amplitude com um nome que parece uma queixa: “TV de pico” —o “dinheiro não compra a felicidade” da vida nas telas.

Vista em retrospectiva, menos televisão começou a ser entendido como menos, simplesmente —menos volume, menos valor, menos verossímil. Mas “Friends” era menos que o quê? Houve 236 episódios da sitcom, apenas um a menos que a soma de todos os episódios de “Game of Thrones”, “House of Cards” e “Orange Is the New Black”.

Quase todos esses episódios são perfeitos como comédias enxutas. Talvez seja difícil pensar em “Friends” como sendo perfeito, o que dirá extraordinário, porque passava a impressão de ser tão tranquilo. Tão fácil.

A maior parte da “TV antiga” parecia fácil —mesmo quando os personagens terminavam namoros, sangravam ou morriam. Isso porque, mesmo quando o faziam, estava na cara que não estavam em um filme. Hoje a televisão é o cinema, por isso gostamos mais. Acreditamos mais. Durante sua existência inteira a sitcom americana foi anticinematográfica, obrigada a ceder às exigências dos anunciantes.

Antes de haver TV em excesso, simplesmente havia muito, incluindo muito “Friends”. Pense no esforço necessário para criar cerca de 24 episódios numa temporada de nove meses (e algumas séries com roteiros faziam ainda mais). Era um trabalho imenso que nós, espectadores em casa, enxergávamos como nada mais que o natural.

Uma rede como a NBC era capaz de tornar esses conteúdos imperdíveis porque ameaçava o espectador com o risco de sair perdendo. “Vamos todos estar em casa para assistir”, ela exigia na década de 1980. Dez anos mais tarde, precisávamos estar em casa para acompanhar os programas “imperdíveis”. Tecnologicamente falando, era uma era de incerteza. Se você perdesse um episódio, quem sabe quando teria outra chance de vê-lo?

“Friends” era televisão fácil de se assistir ao nível de elite. Eram tantas piadas, tanto humor corporal, tantas surpresas e expressões de espanto, tantos gritinhos de emoção do público que acompanhava as filmagens ao vivo.

Salões de beleza imitavam o penteado de Rachel —e muitas vezes não conseguiam. Cafés viraram o segundo lar de muitas pessoas. Dezenas de milhões de americanos acompanharam todo aquele trabalho de escrever, dirigir e atuar, todo aquele esforço aparentemente feito sem qualquer esforço, por todos seus dez anos de duração. Aquele trabalho, e a devoção nacional a ele, parecem a prova de uma era de ouro de alguma coisa.

A familiaridade é o ímã de toda sitcom americana decente. A parte “com” não consegue competir sozinha, e a “sit”, tampouco, se bem que, juntas, elas obviamente formam um sanduíche e tanto.

Mas as muitas noites que passei no meu sofá rindo de Ross e Phoebe discutindo sobre a evolução, por exemplo, ou de Phoebe, Joey e Ross imitando Chandler, de Chandler recuando horrorizado diante das novas tranças de raiz de Monica ou de Rachel levando um século para contar a alguém quem é o pai de seu bebê.

O que me levou a passar essas noites todas com “Friends” nunca foi a comédia de situações. Foram “nós”, eu e aquelas seis pessoas, minha necessidade aparentemente eterna de saber o que elas andam fazendo e como estão, apesar de eu já saber há 25 anos.

“Friends” estreou na NBC no outono americano de 1994, passou uma década inteira no ar, geralmente com entre 25 milhões e 30 milhões de espectadores por semana (às vezes muito mais que isso), e hoje é transmitido no bloco Nick@Nite da Nickelodeon, que meu conglomerado de cabo colocou perto do topo da pirâmide de canais.

Isso significa que, se você é cronologista como eu, a trajetória diária que começa com NY1 e percorre cinco canais —passando pelo jornal local, a TNT e “The Simpsons”— sempre termina com Chandler, Joey, Monica, Phoebe, Rachel e Ross. A preguiça é um dos fatores nessa equação. Você usa as teclas de números do seu controle remoto? Aposto que nem controle remoto você tem mais.

Na realidade, porém, o segredo está na simplicidade. “Friends” é simplesmente muito fácil de assistir. A genialidade de “Seinfeld” (e também de “Os Simpsons”) tem tudo a ver com o fato de a “com” ser decorrente da “sit”. Que confusões Jerry e sua turma vão criar? Quer você esteja assistindo a um episódio pela primeira vez ou a 27ª, a premissa instigante é o maior elemento que garante seu prazer. No caso de “Friends”, a premissa são os “friends”.

É claro que os seis amigos começaram com um quê dos Jerrys. Também eles eram um grupinho de amigos brancos vivendo em Nova York (mas no West Village, ao invés do Upper West Side de Seinfeld).

E muitos dos primeiros episódios envolviam a defesa de normas de etiqueta social (“não são essas as regras!”, Ross fala, peremptório, para uma adversária na lavanderia) e experimentos com namoro e paquera (Monica e Joey tentando separar um casal para conseguirem parceiros solteiros para eles mesmos). Mas em “Seinfeld”, a cidade e a confiança dos personagens em suas próprias regras os conduzem a uma misantropia cada vez mais lunática. Eles eram antissocialites.

Não é o caso dos “Friends”. Questões de comportamento e desigualdade econômica apenas os aproximavam ainda mais. Caso em pauta: o episódio 29. Todo o mundo sai para jantar para festejar a promoção de Monica. Phoebe, Joey e Rachel pedem os pratos mais baratos do menu e depois não querem dividir a conta igualmente entre todos. A renda deles coloca esses três contra os outros três, até que Monica perde o emprego e Joey se oferece corajosamente a pagar o café dela, de US$4 —com o dinheiro de Chandler.

A canção-tema não mentia: eles estavam sempre ali uns para os outros, com piadas e tudo. Essa presença constante era o gancho impalpável da série. Os roteiristas podiam arquitetar tramas para os diretores orquestrarem. Mas aqueles seis atores trabalhando juntos em cima de qualquer coisa ou de nada, eles eram o melhor momento da semana de muita gente.

Aquela presença juntos era tremendamente elástica, também. Eram seis pessoas que podiam ficar discutindo, que podiam brigar, mentir, praticar o que hoje chamaríamos de honestidade radical mas ao mesmo tempo conservar tantos segredos, que podiam terminar uns com os outros (muitas vezes, de muitas maneiras) mas sempre ficar juntos outra vez como sexteto.

Gosto deles assim, como meia dúzia. Gosto deles em duplas e em trios, como problemas de matemática humana, como experimentos químicos. Acho que já devo ter visto umas dez vezes Chandler, Joey e Monica confessando aos outros três que é verdade, Chandler realmente fez xixi em cima da picada que Monica levou de uma água-viva.

Não sei quantas tomadas foram necessárias para filmar essa sequência nem quanta cafeína foi consumida. Mas a cena nunca é menos do que uma maravilha de histeria harmonizada. Esse tipo de comédia de alta energia podia acontecer em qualquer configuração dos seis atores, porque aquele grupinho era o melhor desse tipo na história da televisão.

Outras séries cômicas dignas de figurar no hall da fama, como “Cheers” e “Mary Tyler Moore”, tinham humor, jograis e palhaços misturados aos personagens simpáticos e os resmungões. Alguns, como “Tudo em Família” e as primeiras temporadas de “Designing Women”, tiveram muita personalidade e muitas tiradas ótimas, antes de tudo virar uma fórmula. 

Algumas joias eternamente boas de se assistir como “Supergatas” e “Frasier” inseriram um combo de humor tipo burlesco, ironia e sentimento. Mas as proporções eram maiores em “Friends”. Os friends muito raramente deixavam de acertar em cheio.

Uma razão disso é que os atores tinham mais elementos com os quais jogar. Os amigos de “Friends” começaram como estereótipos. Rachel era a princesa, Monica a controladora total, Joey, um ator burrinho. Mas os estereótipos se mesclavam sempre.

Ross parecia um geek porque as pessoas frequentemente ironizavam sua paleontologia e porque há algo de pegajoso na voz lamuriosa de David Schwimmer. Mas Ross era triste, carente, inseguro, se enfurecia facilmente e tinha um corpão. Phoebe evoluiu rapidamente de hippie ingênua para maquinadora, sonhadora, guardiã da paz e agitadora.

Em outra era, ela teria sido a Suzanne Somers de “Um é Pouco, Dois é Bom e Três é Demais” do grupo, linda e desastrada. Mas, com sua inteligência atenta, Lisa Kudrow alterou o papel. Mais ou menos no início da série, na realidade, alguns dos seis friends estão vendo TV e Chandler comenta: “Acho que este é o episódio de ‘Três é Demais’ em que acontece um mal-entendido”. “Então já assisti”, fala Phoebe rispidamente e desliga a TV.

“Friends” poderia facilmente ter sido “Três é Demais”, em que as partes “sit” e “com” testavam nossa credulidade ao máximo. Tantas vezes as pessoas imaginaram que Chandler fosse gay que ele poderia ter sido Jack Tripper, o famoso falso gay da outra série. E Matt LeBlanc representava Joey como Somers, mas passando por Tony Danza.

Isso provavelmente teria feito de Courteney Cox a Joyce DeWitt de “Friends” uma figura neutra e com a cabeça no lugar. Por alguns episódios, pelo menos, Monica parecia estar destinada a ser o alicerce do grupo. Monica era irmã de Ross. Rachel era uma antiga amiga do colegial que foi dividir seu apartamento com ela.

Mas na metade da primeira temporada ficou claro que o barco dos “friends” não tinha capitão, apenas muitos remadores. E Courteney Cox nunca recebeu o reconhecimento devido pelo tanto que remou. Ela não era uma pessoa tão divertida quanto Matthew Perry ou David Schwimmer, nem tão radiante quando Jennifer Aniston no papel de Rachel. Não conseguia mostrar sarcasmo e choque de modo tão físico e cursivo quanto os outros cinco. Mas sua garra inabalável alçou Monica para um lugar que completamente extrapolava qualquer classificação.

Imagino que ela fosse uma personalidade do tipo A. Monica era a personagem que fazia mais sentido, sendo uma ex-obesa que se agarra ao que foi preciso para ela conseguir se livrar dos quilos a mais e continuar sem eles. Podemos nos espantar hoje com o modo como a série zombou de sua obesidade, por meio do figurino de gorda que Cox usa nos flashbacks.

Esses flashbacks também explicam por que ela aparentemente achava que tudo era uma competição, por que ganhar e perder eram tão importantes para ela, por que o controle era tão importante. E Monica perdia o controle, a calma e o cool tantas vezes. Cada um dos atores conseguiu realizar muito com a intensidade, mas Courteney Cox converteu a intensidade em um estado mental de Monica.

Hoje as pessoas criticam “Friends” por gafes de todos os tipos —relativos à homossexualidade, saúde mental, raça, namoros inter-raciais, etnicidade. Exemplo: Rachel, irritada com quantos pacotes de fraldas ganhou em seu chá de bebê: “O que estamos dando de comer a essa nenê, é comida indiana por acaso?”.

Falar de “Friends” como sendo problemático presta um desserviço à relação complexa da série com todas essas questões. Às vezes a série dava uma piscadela para aqueles problemas. Monica fazia isso muito, especialmente quando se rendeu a uma fase de negritude casual. Suas tranças de raiz e o desdém de Chandler por elas foram uma coisa.

Mas meu momento favorito é quando ela fica gripada, mas se recusa a abrir mão de transar com Chandler. Ele preferiria não transar. Ela dá em cima dele de qualquer maneira, de robe de plush vermelho, cheia de catarro e o R&B de Guy. “Você está dizendo”, ela pergunta, esfregando seu corpo contra seu homem e falando com sotaque afro-americano, “que não quer —nada— com isso?”. É a essência de Monica: determinada a conseguir seu intento, irrestritamente branca.

Existe uma maneira de assistir a “Friends” que faz sua própria brancura (e o sentimento de direitos inatos que acompanha essa condição) virar o problema. Aquela configuração de elenco tão mágica provavelmente não poderia acontecer hoje sem causar ressentimento considerável —ressentimento que eu entenderia.

Durante boa parte do tempo que durou a mania por “Friends”, Eriq La Salle, de “ER”, foi o maior astro não branco de uma série de grande sucesso. “Friends” nos mostrou brancos que esquecem crianças em ônibus urbanos sem sofrerem consequências por isso, que apenas raramente precisam brigar para ter direito à sua mesa permanente no café Central Perk (durante muitos anos, um cartão de “reservado” ficou sempre em cima da mesa). Mas não sei se “Friends” poderia ter sido a série a realizar aquele trabalho, a abrir aquelas portas com a mesma celeridade.

Por exemplo, nunca poderia ter havido um episódio de “Friends” em que, por exemplo, Joey fosse a uma festa negra em Bed-Stuy, no Brooklyn, e contasse a Chandler que foi uma experiência estranha ou maravilhosa, sem que isso tivesse virado um “Episódio Muito Especial”.

Durante parte de seu tempo no ar, “Friends” era exibido no mesmo horário em que “Living Single” era mostrado pela Fox —uma série boa, ao estilo de “Friends”, que era também uma festa negra. Na realidade, Ross e Joey saíram com mulheres não brancas sem que a questão de sua raça tivesse atraído grande interesse nos anos 1990 e 2000, e, mesmo que isso pareça ingenuidade intencional, realmente pareceu ser especial.

“Friends” centrou a maioria de suas apostas sociais sobre as diferenças de gênero, o modo como os homens conseguem ser machistas, preguiçosos e só pensar em sexo sem serem malvistos por isso, enquanto as mulheres precisam compensar pelo que eles deixam de fazer. Mas manipular os estereótipos virou um elemento importante da série.

Houve a vez em que o fato de as meninas não conhecerem os rapazes tão bem quanto eles as conheciam custou a Monica e Rachel o apartamento delas. Para sermos justos: você sabe como Chandler ganha a vida? Mesmo assim, de repente o apartamento pertence a Joey e Chandler. Não deixa de ser chocante.

Assisti aos primeiros anos da série com meus colegas de quarto no dormitório de uma faculdade, onde alojamentos desagradáveis seriam capazes de acabar com amizades. Naquela noite, eu não estava assistindo a uma comédia, estava vendo uma história cautelar.

“Friends” sabia que nossa lealdade era às mulheres e que Monica poderia não sobreviver se tivesse que preparar o café da manhã na caverna dos homens. Por isso a série se recusa a agitar as coisas ainda mais. Monica lança um grito de “não” que não é próprio de uma sitcom —caberia melhor em “Hamlet”.

“Friends” saiu do horário nobre da TV em 2004, justamente quando a sociedade começou a desconfiar de amizades entre homens e mulheres. As séries sucessoras —“How I Met Your Mother”, “The Big Bang Theory”, “Só Acontece com a Mindy”, “New Girl”, a obra-prima de diálogos espirituosos “Finais Felizes”—fizeram o melhor que puderam.

Mas “Sex and the City”, que estreou na HBO em 1998, e os filmes nascidos da fábrica de gargalhadas de Judd Apatow fariam um trabalho tão convincente de encaixar mulheres em noitadas de mulheres e homens em clubes para homens que a cultura nunca mais voltou a acreditar em como é bom amigos e amigas compartilharem juntos em um Central Perk.

“Friends” não foi uma fantasia na primeira vez em que foi exibida. Mas entendo por que tantas pessoas que ainda não haviam nascido nessa primeira vez hoje devoram a série em streaming e a cabo, como se fosse um pote enorme de sorvete (sei de uma garota de dez anos que sabe tanto sobre “Friends” quanto eu).

Não há perigos sexuais, apenas Monica, seu robe e sua gripe; apenas uma convidada vingativa, representada por Julia Roberts, sentada em cima de Chandler, de lingerie, para se vingar de uma brincadeira de pré-adolescência; apenas algumas sacadas maliciosas e vagamente engraçadas.

Tirando isso, a série era um oásis: mulheres adultas passam tempo como homens adultos sem que haja monstros a temer, dos quais fugir ou que precisem ser levados à Justiça. Talvez isso explique por que multidões de nós somos viciados em “Frends”. Sim, é TV fácil de altíssimo nível —mais divertida, maliciosa e ousada do que você percebeu inicialmente e do que era em sua recordação.

Mas é possível que “Friends” hoje não passe de uma fantasia. Se você está querendo restaurar alguma normalidade e presença em sua vida, talvez seja mais do que um programa imperdível. Talvez seja uma pista.

Tradução de Clara Allain

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