Descrição de chapéu

Recolhimento de HQ viola o Estado de Direito

Tentativa de intervenção da prefeitura na Bienal não só lembra a atuação da censura, mas afronta decisão do Supremo

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Renan Quinalha
São Paulo

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou que mandaria recolher o que chamou de “livros com conteúdos impróprios para menores” expostos na Bienal do Livro. 

Depois de ter notificado extrajudicialmente a organização, ameaçando apreender a obra e mesmo cancelar o evento, fiscais da prefeitura compareceram ao local numa verdadeira operação de intimidação para verificar o que estava sendo vendido.

O objeto de toda a preocupação da administração municipal se resume à história em quadrinhos “Vingadores –A Cruzada das Crianças”, publicada há sete anos no país e na qual há uma cena com dois homens totalmente vestidos se beijando.

Coleção oficial de Graphic Novels , VINGADORES a cruzada das crianças, de Allan Heinberg & Jim Cheung - Foto: Reprodução

​O primeiro aspecto que salta aos olhos é o de que não há obscenidade ou pornografia nesse material ficcional. Há uma representação gráfica de um beijo gay entre dois personagens. Não há aquilo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, caracteriza como “cena de sexo explícito ou pornográfica” envolvendo criança ou adolescente.

Tampouco o material seria impróprio ou inadequado, de acordo como artigo 78 do ECA, diante da inexistência de “mensagens pornográficas ou obscenas” que exigiriam embalagens lacradas ou opacas.

Aliás, o artigo 79 do mesmo estatuto prescreve que as publicações e revistas devem “respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em 2011, com base nos princípios da igualdade e da não discriminação, já reconheceu como famílias as uniões conjugais formadas por pessoas do mesmo sexo. Assim, um beijo gay, sem qualquer obscenidade, em nada agride tais valores.

Além de não estar materialmente amparada na Constituição, que consagra em alta conta a liberdade de expressão artística independentemente de censura ou de licença, a atitude de Crivella viola, na forma, competências e procedimentos caros ao Estado democrático de Direito.

A prefeitura não tem o poder policial de busca e apreensão de publicações sem que haja um controle judicial de um pedido desta natureza, garantindo-se os direitos a o contraditório e à ampla defesa.

Em maio de 1969, o general Humberto de Souza Mello oficiou ao Dops do então estado da Guanabara alertando que “tem sido observado, ultimamente, sensível aumento na circulação de livros e outras publicações de caráter licencioso, pornográfico e erótico, cuja difusão é feita indiscriminadamente não só em livrarias — como também em bancas de jornais, feiras de livros etc”.

Prosseguia o general advertindo que “a facilidade com que tais publicações são adquiridas, o interesse que tal tipo de leitura poderá despertar, particularmente na mocidade e, principalmente, seu conteúdo, constituem importantes fatores que vão sub-repticiamente abalando a pedra angular da sociedade democrática que é a família”.

Em nome da moral e dos bons costumes, durante a ditadura civil-militar de 1964, centenas de livros foram censurados previamente, apreendidos, retirados de circulação e incinerados na Companhia Municipal de Limpeza Urbana vinculada à prefeitura do Rio. A liberdade de expressão terminava na vontade de qualquer técnico da censura de plantão.

A tentativa de intervenção da prefeitura na Bienal não apenas lembra a atuação da Divisão de Censura de Diversões Públicas, extinta pela Constituição de 1988, mas configura uma afronta à recente decisão do STF que considerou a discriminação contra pessoas LGBT como análogo ao crime de racismo.

O próprio estado do Rio de Janeiro editou a Lei 7.041 em 2015 para punir “agentes públicos e estabelecimentos” por atos de discriminação baseados em “preconceito de sexo ou orientação sexual”.

É preciso apurar com rigor as responsabilidades neste caso, pois estamos diante de um passo significativo na crescente escalada de intervenções de instituições de Estado no campo da produção cultural.

As cruzadas morais contra a liberdade de expressão artística não começaram agora. Nos últimos dois anos, mostras de artes visuais, performances e peças de teatro vêm sendo atacadas em diversos locais do país. Editais sobre a temática da diversidade sexual e de gênero estão sendo suspensos. É preciso pôr um ponto final nessa história de censuras antes que seja tarde. 

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